André Fernandes, o inquieto
Em Dream Keeper, o guitarrista português volta a colocar o contador a zero e a inaugurar um novo projecto que parece esquecer os anteriores. Há novos mundos na música de André Fernandes.
O entusiasmo de André Fernandes com música nova tem um tempo de vida curto. Talvez de uma vespa (1 ano) ou de uma toupeira (2 anos), dificilmente de um murganho (3 anos). Precisamente porque a novidade se gasta, aquilo que era terreno de descoberta e surpresa transforma-se num caminho cartografado do qual se conhece cada buraco na estrada ou cada porta que antes parecia selada. André Fernandes aborrece-se com facilidade e rapidamente. “Quando estou com algum projecto ou disco novo”, diz ao Ípsilon, “vivo para essa música. Mas depois esgoto essa energia e preciso de recomeçar.” Quando aquilo que era risco se torna reconhecimento familiar, quando aquilo que era descoberta já só soa a repetição, quando começa a sentir-se na pele de alguém que toca versões da sua própria música, o guitarrista desfaz-se das peças mas também do tabuleiro. Não muda apenas a música, muda as formações, põe o contador de novo no zero e começa a ruminar um novo ímpeto criativo.
O que pode ser um problema. Em parte porque o potencial de cada grupo, artístico e de reconhecimento público, é sempre interrompido. E depois porque aquilo que pode seguir-se a um projecto altamente valoroso pode levar André Fernandes a tropeçar e a estatelar-se. Esse risco está sempre lá, ele não o nega, e sabe bem que deve estar atento aos seus sinais. Recuando apenas aos dois últimos álbuns, não custa a identificar em Motor (2012) um dos mais espantosos momentos do músico enquanto compositor, à frente de um soberbo sexteto (Bernardo Sassetti, Demian Cabaud, Marcos Cavaleiro, Zé Pedro Coelho e Susana Santos Silva), para depois amaciar com um Wonder Wheel (2014) sintonizado com o universo das canções. Dream Keeper volta agora a devolvê-lo ao topo de forma, liderando uma formação em que se contam Perico Sambeat (saxofone e flauta), Alexi Tuomarila (piano), Cabaud (contrabaixo) e Iago Fernandez (bateria).
André Fernandes soube, no entanto, sedar a sua ansiedade pela gravação de um novo reportório. A maioria dos temas do novo disco foi composta para um concerto integrado no ciclo Histórias do Jazz, de Manuel Jorge Veloso e António Curvelo, tendo sido estreada em Guimarães com um grupo nacional em que se incluíam dois sopros e nenhum piano. “Digamos que o concerto correu bem mas não foi incrível”, recorda, reconhecendo não ter conseguido uma correspondência entre a música que imaginara solitariamente e aquela que foi levantada pelos instrumentos em palco. Alguma coisa falhara sem que a sua convicção naquele mesmo material (pensado para músicos que partilhassem a desenvoltura no saxofone com a flauta e o clarinete baixo) saísse beliscada. Os temas ficaram então a repousar até que, em 2015, o CCB convidou o músico a apresentar um concerto, proporcionando condições para que André pudesse “importar” alguns dos elementos da banda, ocasião perfeita e aproveitada “para trazer malta com quem queria gravar há algum tempo e que dificilmente poderia trazer noutras circunstâncias”.
Mais rock do que jazz
Reconfigurando o grupo e adaptando a música estreada em Guimarães, André Fernandes chamou para o CCB e para a gravação em estúdio que se lhe seguiu Sambeat e Tuomarilla, com quem havia já colaborado em discos de ambos, escolhas absolutamente certeiras para Dream Keeper, apresentado ao vivo este sábado na Festa do Jazz, no Teatro São Luiz. Sambeat, frequentador assíduo do jazz português, surpreendeu André pela sua fluência enquanto flautista, permitindo que a sua música seja disparada, em temas como Rabbit Hole ou Snakes and Lizards, para um universo brasileiro tangente à selva jazzística de Hermeto Pascoal – geografia jazzística pela qual o músico nunca manifestou particular atracção. Tuomarila, com uma riquíssima largueza de registos, abre espaço para a guitarra se aventurar por trilhos mais melódicos e corre atras dos delírios rockeiros que Fernandes continua a acomodar.
O rock, mais camuflado ou mais exibicionista, sempre esteve presente na sonoridade de um guitarrista de jazz que diz ouvir mais rock do que jazz e quase nenhuns guitarristas. E mesmo os espasmos progressivos que se detectam em Dream Keeper ou Jack pouco têm de descendentes “desse universo épico dos anos 70 com pianos a descer do céu e explosões em palco”, como André descreve. O rock a que empresta os ouvidos é, na verdade, directo e sujo, ligado aos milhentos projectos dos homens dos Queens of the Stone Age ou a Jack White.
Colhendo do rock uma relação vibrátil e instintiva com a música, Dream Keeper aprofunda em simultâneo a afirmação de André Fernandes como compositor e arranjador, e não apenas como instrumentista. A sua escrita musical surge cada vez mais ágil, acumulando camadas melódicas e desembrulhando progressões harmónicas que, mesmo se ditadas pela intuição e não pela razão, demonstram uma afinada capacidade de coser elementos e instrumentos, apontando para peças montadas com rigor e inventividade sem, com isso, agrilhoar a liberdade de cada músico.
Dream Keeper, cujo título de trabalho era 1, marca também um recomeço no percurso do músico. É o seu primeiro álbum enquanto líder lançado fora da Tone of a Pitch (TOAP), a editora que fundou em 2002 com Nelson Cascais e Nuno Ferreira. Com o encerramento da TOAP, André voltou-se para fora pela primeira vez, apostando na edição pela inglesa Edition e conseguindo, assim, furar na crítica internacional – primeiro passo para que o seu nome possa finalmente impor-se num circuito europeu com os seus projectos e não como sideman de músicos como Tomasz Stanko. Mas a formação e a ligação à editora, esclarece André, foram fruto das circunstâncias e da possibilidade criada pelo convite do CCB, “não foi um plano maquiavélico de conquista mundial”, ri-se.
Até porque a conquista de Dream Keeper é, antes de mais, pessoal. É a conquista de um espaço criativo, de mais uma reviravolta nos seus projectos e de uma repetida recusa em se conformar com a sua música tal e qual como já a conhece. E a conquista de, mesmo que seja só por agora e se esboroe passados alguns metros, por enquanto André acreditar que este grupo tem futuro e pode virar a durar longos anos.