Supremo anula condenação de inspectora da PJ suspeita de matar avó do marido
Ana Saltão tinha sido sentenciada a 17 anos de cadeia. Juízes põem em causa vários passos da investigação do crime feita pela Judiciária
O Supremo Tribunal de Justiça anulou nesta quinta-feira a condenação da inspectora da Directoria do Porto da Polícia Judiciária condenada a 17 anos de cadeia pela morte da avó do marido.
O crime teve lugar em 2012, em Coimbra. Dezena e meia de tiros disparados por uma arma do mesmo tipo das usadas pelas forças policiais puseram fim à vida da octogenária. A inspectora Ana Saltão, que sempre pôs em causa a idoneidade da investigação do crime por parte dos seus colegas da brigada de homicídios da Judiciária, começou por ser absolvida em primeira instância por um tribunal de júri, para depois, em 2015, ver o Tribunal da Relação de Coimbra sentenciá-la a 17 anos de prisão.
Para os juízes do Supremo, o acórdão em que os magistrados do Tribunal da Relação de Coimbra condenam Ana Saltão enferma de vários vícios e contradições, razão pela qual o caso vai voltar a ser distribuído a outros juízes daquele tribunal, que decidirão se mantêm a absolvição do tribunal de júri da primeira instância, se a contrariam ou se mandam repetir o julgamento.
Tal como já tinha sucedido com a decisão de primeira instância, também os magistrados do Supremo põem em causa vários aspectos da investigação ao crime desenvolvida pelos colegas de Coimbra da arguida. Descartadas pelo Tribunal da Relação, as dúvidas sobre a origem dos resíduos de chumbo provenientes de uma arma de fogo encontrados no blusão que a suspeita estaria a usar na altura do crime voltam a ganhar força no acórdão do Supremo conhecido esta quinta-feira.
É que a análise pericial à peça de roupa foi feita depois de o blusão ter sido deixado no chão de uma sala da brigada de homicídios da Judiciária. “Entram diariamente no gabinete em causa arguidos, testemunhas e outros inspectores que, muitas vezes, estiveram no local de crimes de homicídios praticados com armas de fogo?”, interrogam os juízes, sugerindo ser provável que esta prova, que serviu para condenar a inspectora, tenha afinal sido contaminada por vestígios que nada tinham a ver com o crime em causa. Questionado sobre o assunto, um inspector da Judiciária reconheceu que o blusão não devia ter sido colocado no chão, mas que naquela sala não se faziam disparos e que o pavimento até tinha sido limpo pelas empregadas de limpeza com esfregona e cera, como de resto era habitual.
Mas os juízes do Supremo levantam mais dúvidas. Dizem ser preciso também apurar se o blusão e restantes peças de roupa alegadamente usadas por Ana Saltão nesse dia – calças de ganga e sapatilhas – foram guardados num único saco de recolha de provas, “contrariamente às regras do manual de procedimentos da Polícia Judiciária”. As dúvidas estendem-se à própria análise ao vestuário: terão as peças sido analisadas em toda a sua extensão ou só em parte?
O número de tiros disparados e os ferimentos que causaram no corpo da idosa é outra questão controversa: "Não consta da factualidade apurada quantos projécteis foram recolhidos no corpo da vítima e que fragmentos de munições, qual a sua composição e de que tipo e lote eram". Aqui surge uma das muitas contradições detectadas pela advogada da arguida no acórdão que a condenou no ano passado, várias das quais foram agora apontadas também pelo Supremo: o facto de a vítima apresentar 16 orifícios de entrada de bala no corpo, mas os juízes da Relação falarem em apenas 14. A questão ganhou importância por na altura do crime ter desaparecido da gaveta de uma colega da suspeita uma arma do mesmo tipo da que serviu para matar a idosa de Coimbra, e que só tinha 14 projécteis.
Por fim, nunca se conseguiu determinar ao certo o móbil do crime. Terá Ana Saltão cometido o crime por não querer continuar a pagar um empréstimo que ela e o marido tinham pedido à idosa e ao mesmo tempo lucrar com a sua herança? Nada disto se provou em tribunal. "Não consta da factualidade apurada se havia alguma relação de conflitualidade entre a vítima e outros familiares seus", nomeadamente a suspeita, apontam os juízes do Supremo.
A condenação feita pelo Tribunal da Relação merece-lhes observações nada lisonjeiras: dizem que a decisão dos seus colegas "extrai ilações" e chega a conclusões "temerárias" ou mesmo sem sustentação lógica, enfermando de contradições insanáveis e outros vícios. E elencam nada menos de nove dezenas de questões sobre o que realmente se terá passado, às quais o tribunal que vier a repetir o julgamento vai ter de tentar responder. Morando a inspectora na Maia, de que forma terá viajado até Coimbra nesse dia? Pelo menos dois desses mistérios serão, porém, de resolução bastante simples. É que os magistrados insistem em ver apurado não só quanto tempo demora fazer este trajecto mas também quantos quilómetros separam as duas cidades.