Futuro de Assad é a peça que está a emperrar as negociações sobre a Síria
Oposição insiste num processo de transição política sem o Presidente, mas regime recusa-se sequer a falar em novas eleições. Enviado da ONU diz que se aproxima uma das melhores oportunidades de entendimento desde que a guerra começou.
Os dias que antecedem a ronda mais promissora de negociações para a paz na Síria desde o início da guerra recuperaram a discussão mais antiga do conflito. Que futuro deve haver para o Presidente Bashar al-Assad num cenário de transição política ou de pós-guerra?
A delegação que representará o Governo nas negociações de segunda-feira em Genebra disse que se recusaria a discutir com opositores a continuidade do Presidente, ou até um cenário de novas eleições. Rebeldes e aliados respondem acusando o regime de romper com compromissos passados e querer condenar as negociações ao fracasso.
“Se o regime e os seus aliados pensam que podem testar fronteiras, diminuir a sua obediência em determinadas áreas ou agir de maneira que questione o seu compromisso com a cessação [de hostilidades] — sem que isso traga consequências sérias para o progresso que fizemos — estão enganados”, disse este domingo John Kerry, o secretário de Estado norte-americano, em Paris, onde se encontrou com ministros europeus.
Kerry referia-se aos comentários de sábado do ministro sírio dos Negócios Estrangeiros, Walid al-Moualem. Ao anunciar oficialmente a ida de uma equipa do Governo a Genebra, o governante sírio disse que discutir a partida de Assad ou um cenário de novas eleições seria para ele cruzar "uma linha vermelha".
“Não falaremos com ninguém que queira discutir a posição da presidência”, afirmou Moualem. “Aconselho-os, se este é o seu pensamento, a não virem às negociações.”
Uma possível partida de Assad está no centro da discussão sobre a Síria desde que o conflito começou, em 2011. Opositores disseram desde o início que só aceitariam negociar quando — e se — o Presidente sírio abandonasse o poder. Os seus aliados no Ocidente insistiram nesta abordagem até que no último ano a Rússia entrou em cena e desloqueou a guerra a favor do regime, que nesse momento ameaçava perder a guerra.
Desde então — reconhecendo o que para muitos era já uma evidência antiga: os rebeldes moderados eram uma alternativa inviável —, as posições da oposição e no Ocidente atenuaram-se. Abandonaram gradualmente a ideia de que Assad teria obrigatoriamente de abandonar a presidência no começo de qualquer tipo de negociações e começaram a afirmar que o ditador teria de o fazer, o mais tardar, no início de um processo de transição política.
O mapa das negociações que arrancam segunda-feira é o mesmo que ficou delineado nos encontros de Genebra II, no início de 2014. Regime e opositores devem discutir um cessar-fogo — o que está em vigor é uma “cessação de hostilidades” acertada entre a Rússia e os Estados Unidos — para depois formarem um corpo de transição política que prepare uma nova Constituição e novas eleições.
O documento nada diz sobre a partida de Assad. Mas existe uma ideia consensual — embora tácita — de que é impossível chegar a um processo credível de paz na Síria com Assad no Governo. A discussão deve desenrolar-se sobre o momento em que o governante sairá do poder: opositores recusam-se a formar um órgão de transição com ele; Governo sugere que o máximo que pode fazer é incluir algumas figuras da oposição na actual equipa.
“O facto é que os apoiantes mais fortes [de Assad], Rússia e Irão, adoptaram ambos uma abordagem que dita que deve existir uma transição política e que devemos ter uma eleição presidencial a dada altura”, explicou John Kerry, em Paris. Ao seu lado, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Jean-Marc Ayrault, disse que as declarações do seu homólogo sírio não passavam de “uma provocação”.
Síria repartida?
A trégua temporária revelou-se mais resistente do que muitos antecipavam. Dura há duas semanas — apesar das violações diárias de ambos os lados, como o abater de um caça sírio MiG-21 no sábado —, permitiu o envio de toneladas de apoio humanitário a zonas cercadas ou de difícil acesso e devolveu alguma sensação de segurança ao povo sírio. Nos últimos dias multiplicaram-se protestos anti-regime — também manifestações contrárias aos grupos extremistas al-Nusra e Estado Islâmico —, uma imagem a que não se assistia desde os primeiros momentos de guerra.
O enviado especial das Nações Unidas para a Síria, Staffan de Mistura, diz acreditar que a nova ronda de negociações em Genebra é uma oportunidade inédita para um entendimento político, notando que os grandes actores regionais e internacionais estão pela primeira vez em diálogo. "Há cinco anos, ninguém conseguiria imaginar que o conflito poderia chegar a este estado. Mas talvez agora tenhamos uma oportunidade para lhe pôr um fim”, disse à Al-Jazira, numa entrevista emitida no sábado.
As duas últimas semanas de trégua deram fôlego a propostas que se foram esquecendo com a intensificação da guerra, como a de uma possível repartição ou federalização da Síria. A ideia foi subtilmente recuperada no final de Fevereiro pelo vice-ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Ryabkov — rapidamente desmentida pelo Kremlin, cuja posição oficial é a de que qualquer decisão cabe aos sírios.
A solução agrada aos curdos, que controlam uma parte importante do Norte do país, que querem usar como rampa para um projecto de autodeterminação política, como fizeram os curdos no Iraque — as milícias não participam nas negociações de Genebra por imposição da Turquia, que as considera uma extensão dos separatistas no seu país.
Staffan de Mistura recusa uma repartição da Síria. “A unidade do país é fundamental”, disse à Al-Jazira. “A última coisa que a Síria precisaria e se poderia permitir é uma divisão: pequenos Estados — um controlado por um grupo, patrocinado por outro — seria insustentável. Creio que nenhum sírio, quem quer que ele ou ela seja, o aceitaria. São pessoas com muito orgulho do seu país.”