O colapso moral da Europa?

1. Aquilo que até há pouco tempo se afigurava impensável poderá estar prestes a tornar-se realidade: a União Europeia, abjurando todo o património de que tem sido portadora no campo dos direitos humanos, dispõe-se a pôr em causa o direito de asilo e a violar de modo grosseiro algumas convenções internacionais que ela própria originou. O sórdido pré-acordo estabelecido esta semana com a Turquia demonstra quão frágeis são as presentes lideranças políticas europeias, incapazes de enfrentarem tendências xenófobas manifestadas por opiniões públicas desorientadas e de pactuarem entre si soluções condignas para o ingente problema dos refugiados. Na semana passada, discursando em Haia, Jean-Claude Juncker, que apesar das dificuldades que se lhe deparam tem permanecido como uma das vozes mais lúcidas e moralmente acertadas no meio desta tempestade, reconduzia a questão para os seus termos mais precisos: “somos o continente mais rico, com 500 milhões de pessoas, e no entanto não parecemos ser capazes de lidar com um ou dois milhões de refugiados”.

O espectáculo de contradições, ameaças e divisões que nos foi dado observar nos últimos meses parece ter agora um epílogo sombrio. Invocando-se o propósito de desmantelar o tráfico de refugiados por via marítima, que tão catastrófico se tem revelado, opta-se pela via da devolução à Turquia de milhares de seres humanos já instalados em território europeu. O simbolismo de tal decisão assume uma dimensão trágica. Significa desde logo a incapacidade dos vários países europeus conceberem e aplicarem uma estratégica ordenada de acolhimento de um número de refugiados que está muito longe de ser realmente assustador. Esta incapacidade não se manifestou de forma homogénea por todo o território europeu. Houve países que actuaram com decência e outros houve que foram muito para além dos limites de tudo o que é aceitável no que toca à falta de decoro. Entre os primeiros haverá que salientar a Alemanha, a Itália, a Grécia, a Suécia, e, nos últimos tempos, Portugal; entre os segundos destacaram-se alguns países de Leste, dirigidos por repelentes figuras de opereta que não hesitam em mimetizar as pulsões xenófobas dos sectores mais extremistas das respectivas populações. O resultado global foi claramente muito negativo, pondo em causa a capacidade orientadora dos órgãos comunitários e impelindo os dirigentes nacionais com um comportamento mais meritório a adoptarem compromissos menos exigentes, dado o estado de isolamento para que foram remetidos.

Chegamos assim ao ponto, a todos os títulos lamentável, de procurar substabelecer na Turquia a responsabilidade maior pela gestão de tão complexa crise. Numa altura em que este país resvala para um cenário de erosão democrático-liberal, que se manifesta numa compressão das liberdades públicas, e numa degradação do Estado de Direito, a União Europeia apresta-se a firmar com ele um acordo atentatório de alguns dos princípios que a devem inspirar. É bom recordar que a Turquia não reúne actualmente os requisitos mínimos para aderir ao espaço político europeu, dado não preencher ostensivamente os critérios de Copenhaga. Para além disso, não fornece as garantias exigíveis de salvaguarda dos direitos dos refugiados que para lá se pretendem agora reencaminhar. Não significa isto que se não deva prosseguir um diálogo sério com as autoridades turcas tendo em vista a participação do país no processo de resolução do problema. Não poderia aliás ser de outra maneira, já que ali se concentra o maior número de refugiados sírios. Uma coisa, porém, é tentar alcançar um acordo justo e equilibrado, outra é ceder a chantagens momentâneas com o único intuito de transferir para terceiros responsabilidades próprias. Deste modo, a União Europeia também está a prestar um mau serviço ao povo turco.

Nos próximos dias, ainda algo se poderá fazer para evitar este verdadeiro colapso moral por parte da Europa. Ontem mesmo, no Parlamento Europeu, ficou claro que nenhum agrupamento político aí representado se reconhece nesta linha de orientação, com a provável excepção de um ou outro sector mais extremista e menos expressivo. Curiosamente, nem o PPE, nem os Socialistas e Democratas — grupos de que são originários quase todos os chefes de governo europeus — revelaram adesão aos propósitos esboçados na cimeira UE-Turquia. Não será por acaso que assim sucede: aqueles que permanecem, até pela própria natureza das funções que desempenham, mais empenhados na promoção do verdadeiro espírito europeu, compreendem o quanto este pode ser ofendido se prevalecer o caminho tão levianamente traçado. Esperemos que a essa preocupação se associem os chefes de governo que já provaram ter plena consciência do que está em causa. É justo realçar que o primeiro-ministro português, António Costa, se tem destacado pela positiva na abordagem desta questão. A sua actuação prestigia Portugal e poderá contribuir para a criação de um ambiente político de outra natureza no quadro europeu em geral.

2. Marcelo Rebelo de Sousa proferiu ontem, na cerimónia da sua tomada de posse, um belo e sólido discurso que deve ser interpretado como o acto fundacional da sua Presidência. Num texto assaz equilibrado, o novo Presidente da República revelou duas preocupações fundamentais: a da inscrição da sua acção no tempo longo da história nacional, ainda que com a natural valorização do período correspondente à II República, em que nos é dado viver; a da afirmação do seu posicionamento institucional como agente fomentador de entendimentos entre aquilo que ele próprio definiu como “diferentes hemisférios políticos”.

Deste modo, e com a precisão de quem conhece bem o valor das palavras, Marcelo Rebelo de Sousa deixou muito claro que o seu lugar e o seu tempo políticos não são confundíveis com as contingências próprias das disputas partidárias ou com a natureza, por definição volátil, dos entendimentos e desentendimentos parlamentares. Assume-se assim como um referencial de estabilidade de que o país precisava e de que provavelmente vai precisar ainda mais no futuro. É uma boa notícia. Desejo as maiores felicidades ao senhor Presidente da República.

 

 

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