O primeiro dia foi "como um sonho", os restantes "vamos ver se é possível"
O novo Presidente tomou posse ao som de música popular, apertou a mão a sikhs e budistas, deu autógrafos e ouviu elogios de António Costa. A tomada de posse foi cerimoniosa, simbólica e popular, numa mistura inédita.
Entre os passos 31 e 38 do complexo guião da tomada de posse, alguma coisa muda. No fim do juramento de Marcelo Rebelo de Sousa, iniciado às 10h11, a Banda da GNR inicia os acordes d’A Portuguesa. Este é o 31.º momento da sessão solene, como indica o livro de protocolo do Parlamento.
Mas de tão solene, o hino não parece ter letra. Só nos versos “oh Pátria sente-se a voz” é que se sente, de facto, não a voz, mas um quase murmúrio dos presentes. Muito diferente da convicção demonstrada pelos parlamentares de todas as bancadas no segundo hino, prescrito pelo 38.º momento. Entre os dois houve a ritual troca de lugares, com Cavaco Silva a deslocar-se para o lugar onde se senta Marcelo — à esquerda do Presidente da Assembleia da República —, e o novo Presidente a ocupar a cadeira do seu antecessor. Seguiram-se os discursos.
O novo Presidente citou Lobo Antunes, Miguel Torga e um “herói do século XIX”, Mouzinho de Albuquerque. E acabou a louvar “a indomável inquietação criadora” dos portugueses. Os representantes do povo testemunharam a proverbial inquietude de Marcelo. Para só listar algumas das inovações: o Presidente eleito dormiu na casa de família, na Estrela, e deslocou-se a pé para São Bento. Na semana passada, queixara-se por estar prestes a perder liberdade, que ilustrou com um facto simples, o de daqui em diante não poder conduzir o seu carro.
Houve muitas outras inovações, nesta tomada de posse sem “primeira-dama” e com convidados estrangeiros escolhidos simbolicamente, como exemplos de “coordenadas essenciais da nossa política externa”. O rei Filipe VI de Espanha, pelas “exemplares vizinhança, irmandade e cumplicidade europeias”. O Presidente de Moçambique Filipe Nyusi, pela “vontade de construir um novo futuro assente numa eloquente e calorosa fraternidade, e comunidade de destino”. E Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia, pelas razões que diariamente se tornam óbvias e Marcelo sublinha na dupla adjectivação do “nosso empenho numa Europa unida e solidária”.
Marcelo já tem a sua primeira visita oficial marcada. Parte para o Vaticano a 16 de Março, encontra-se com o Papa Francisco no dia 17 e nessa mesma noite, em que regressa a Lisboa, faz uma curta paragem em Madrid para se encontrar, mais uma vez, com Filipe VI.
Parece um roteiro conservador? Marcelo tem outros. Na tarde deste dia solene, depois de tomar posse, de depositar a tradicional coroa de flores no túmulo de Camões — e outra no de Vasco da Gama, uma inovação — e almoçar no Palácio de Belém, as cerimónias prosseguiram na Mesquita Central de Lisboa.
Junta-se para receber Marcelo uma rara multidão de crentes. Inédita, numa posse presidencial, embora não estranha ao legado de um dos ex-Presidentes, Jorge Sampaio, que trabalhou no diálogo inter-religioso, com a sua presidência da Aliança das Civilizações, da ONU e, não por acaso, se senta na primeira fila dos convidados.
Às 16h, o novo auditório da mesquita foi-se enchendo de mulheres muçulmanas com hijab, outras com chador, homens de fez na cabeça, outros de quipá judaico, ou túnicas laranja budistas. Há hábitos que revelam monges: anglicanos, católicos franciscanos. O tradicional fato e gravata das posses está em franca minoria. Ao todo há 17 confissões religiosas representadas neste encontro ecuménico, entre as quais evangélicos, bahais, hindus, ismaelitas, shiitas, sunitas, sikhs, mórmones, ortodoxos, budistas (Buddahs Light e União Budista), judeus e católicos.
A ideia foi de Abdool Vakil, presidente da Comunidade Islâmica e Marcelo gostou do simbolismo. Permitiu-lhe, aliás, enviar um recado para a “política”, ao louvar o exemplo deste “espírito ecuménico” e de “compreensão recíproca”. De manhã, no Parlamento, dissera que é tempo de “cicatrizar feridas”. Agora faz o mesmo na mesquita que, segundo Vakil, é “uma casa cujas portas estão sempre abertas a todos os que acreditam na paz”.
A mensagem política é óbvia, mas não esgota a imagem desta sala que não precisa de legenda para afirmar a sua multiculturalidade, ou multietnicidade. E isso não é óbvio, hoje, na Europa, nem é o cartão de visita habitual do comum dos políticos conservadores.
“O fim de um ciclo”
Marcelo chegou a pé ao Parlamento, com 2.413.956 votos escrutinados numa acta eleitoral que demorou longos minutos a ler, na voz paciente de Duarte Pacheco, o deputado do PSD que secretaria a mesa da Assembleia. Mas não chegou Presidente.
Esse continuou a ser, até às 10h14, Aníbal Cavaco Silva. O Chefe de Estado em funções chegou na viatura oficial, acompanhado por Maria Cavaco Silva, e permaneceu em silêncio até ao final do dia quando, após receber o Grande Colar da Ordem da Liberdade, no Palácio da Ajuda, disse que este “é o fim de um ciclo”. “Agora vou descansar”.
Cavaco foi elogiado por Ferro Rodrigues e Marcelo, e passou algum tempo à conversa com ambos, e António Costa, durante a cerimónia de cumprimentos.
As imagens de concórdia sucederam-se, nos Passos Perdidos, no Salão Nobre e na Sala das Sessões. Estava Carlos César, líder parlamentar do PS, a elogiar as referências de Marcelo “à coesão nacional” e, atrás de si, a imagem subia a parada: Marcelo e Sampaio da Nóvoa abraçam-se.
Aliás, Marcelo recuperou muitas das ideias do seu adversário eleitoral no discurso ao Parlamento. E saudou-o, bem como aos restantes quatro candidatos que aceitaram o convite para estar na sessão (Vitorino Silva, Jorge Cerqueira, Paulo Morais e Cândido Ferreira).
À saída, sorridente, Nóvoa elogiou o Presidente: “Precisamos de discursos que juntem as pessoas numa visão de futuro. É tempo de união. Marcelo é o meu Presidente — e o de todos os portugueses.”
A imagem dentro do Parlamento era essa. Vítor Bento, Bagão Félix, Francisco Louçã e Manuel Caldeira Cabral, ministro da Economia, juntam-se ao centro do hemiciclo, em conversa distendida. Louçã cumprimenta ministros na bancada do Governo. Na galeria reservada aos ex-Presidentes e ex-primeiros-ministros, António Guterres conversa à vez com Francisco Balsemão e Jorge Sampaio. Só há uma imagem dissonante: o protocolo sentou Carlos Silva, da UGT, e Arménio Carlos, da CGTP, em lugares contíguos mas com um pilar de mármore a meio.
E houve, claro, a questão dos aplausos. Bloco, PCP e PEV não aplaudiram o juramento, nem o discurso de Marcelo. Catarina Martins explicou que as ideias do Presidente revelam “uma visão em boa medida conservadora do país”. Também Jerónimo de Sousa criticou em Marcelo a falta de vontade para iniciar “qualquer processo de ruptura”.
Muitos foram, no entanto, os elogios. Como o do primeiro-ministro, António Costa, que o considerou “um discurso em que todos nos podemos reconhecer”.
Os aplausos reeditaram o extinto “arco da governação”. Nada que deva fazer mossa à auto-estima do novo Presidente, conhecida que é a austeridade de BE e PCP em matéria de aplausos no Parlamento às intervenções do próprio primeiro-ministro que aprovaram.
Mas esta posse tem uma complexidade própria. E houve momentos em que só a esquerda (BE e PCP incluídos) aplaudiu Marcelo. Como quando afirmou que “finanças sãs desacompanhadas de crescimento e emprego podem significar empobrecimento e agravadas injustiças”. Houve mais razões, à esquerda, para aplaudir do que para apupar, se descontarmos os arroubos literários de “portugalidade”. São exemplo disso as referências aos “jovens capitães” de Abril , à Constituição como “denominador comum” do país, ao “Estado Social de Direito”. Marcelo fez suas bandeiras da esquerda: “O poder económico deve-se subordinar ao poder político e não este servir de instrumento daquele [...] em particular, para aqueles que a mão invisível apagou, subalternizou ou marginalizou.” Uma crítica a Adam Smith, que Cavaco acaba de levar para a galeria dos retratos presidenciais, com o tomo de A Riqueza das Nações logo abaixo da Constituição portuguesa.
Um dia de “sonho”
Marcelo é um conservador inquieto, capaz de juntar na sua posse, numa mesquita, D. Manuel Clemente, o cardeal patriarca de Lisboa e o sheikh David Munir, imã de Lisboa, sikhs monoteístas e hindus politeístas, numa “oração ecuménica universal” que é lida por todos: “Senhor, Tu És a fonte da vida e da paz;/ Louvado seja o Teu Nome para sempre;/ Sabemos que Tu Orientas as nossas mentes para pensamentos de Paz;/ Ouve as nossas preces em tempos de crise”.
Foi a esses “tempos de crise” que dedicou a parte central das suas intervenções: “O Presidente da República é o Presidente de todos. Sem promessas fáceis ou programas que se sabe não pode cumprir, mas com determinação constante. Assumindo, em plenitude, os seus poderes e deveres. Sem querer ser mais do que a Constituição permite. Sem aceitar ser menos do que a Constituição impõe.”
Mas também uma estrela popular, como se viu à noite, numa Praça do Município que juntou centenas de pessoas, a maioria jovens. Nem todas vieram para ver Marcelo, uma vez que o cartaz tem Anselmo Ralph, Pedro Abrunhosa, José Cid e Paulo de Carvalho. Mas assim que acenou, republicanamente, da varanda do Salão Nobre dos Paços do Conselho, ao lado do presidente da câmara, Fernando Medina, a multidão gritou: “Marcelo!” E quando desceu, após o hino, por Mariza, foi abordado por jovens para assinar autógrafos, enquanto se dirigia para a sua cadeira na primeira fila. Ali se sentou, de manta verde sobre as pernas, boné a aparar o frio, abraçando o menino à sua direita e cantando em coro com Medina, à esquerda.
O dia decorreu exactamente como queria, dissera à saída do Palácio Nacional da Ajuda. “Se fosse assim [o resto do mandato] era um sonho. Vamos lá ver se é possível.” com Maria João Lopes
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