O jornalismo entre a confiança e a desconfiança

Porque não dedicou o PÚBLICO um capítulo à dimensão da confiança entre o jornal, os jornalistas e os seus leitores?

No sábado, 5 de Março, o PÚBLICO celebrou o seu 26.º aniversário. Assinalou essa edição com duas notas distintivas: foi seu director, por esse dia, o atleta internacional Nelson Évora, e escolheu como tema especial desta edição a Confiança. Como afirmava, no seu editorial (pág. 80), “Nesta edição, viramos a confiança do avesso. Fomos aos bancos, aos outros, à Constituição, à Europa, ao nosso bairro”. De facto, com grande imaginação e propriedade, o PÚBLICO, a partir da análise a este conceito, para além das 19 personalidades que foi auscultar sobre como viam o estado de confiança em Portugal, aprofundou a valoração múltipla deste conceito nos mais diversos campos da vida. Com arrojo especial e particular ineditismo, destaco aquele que entrou na área científica, com a colaboração da Fundação Champalimaud, sujeitando o director do dia, Nelson Évora, a uma ressonância magnética à procura da possibilidade de descobrir dentro do cérebro humano “qualquer pedaço de actividade que está relacionada com um processo de memória, acção, ou outras coisas pode também ter presente a confiança nessa informação” (declaração do cientista Zachary Mainen, a demonstrar que os caminhos de descoberta da ciência continuam inesgotáveis).

Mas a que propósito faço eu esta resenha dos conteúdos do PÚBLICO da edição aniversariante de 5 de Março? É que, entretanto, nesse mesmo dia, telefona-me um leitor, grande apreciador do jornal e que tem comigo uma longa conversa, que, de modo genérico, dá mote a considerações sobre algumas das mais sensíveis problemáticas do jornalismo de hoje. O leitor, sobretudo partindo da definição expressa pela filósofa Onora O’Neill, na entrevista que lhe faz a jornalista Joana Gorjão Henriques, em que esta cientista afirma que “o conceito fundamental não é a confiança, mas a confiabilidade”, levanta-me uma questão pertinente: sabe, neste excelente tratamento sobre a confiança nos mais diferentes campos, notei uma lacuna — porque não dedicou o PÚBLICO um capítulo à dimensão da confiança entre o jornal, os jornalistas e os seus leitores? E volta a citar Onora O’Neill: “Acredito que temos um problema cultural em abordar a questão da confiabilidade. Isso parece-me um erro, porque a única confiança que vale a pena ter é a confiança bem depositada — e confiança bem depositada é a confiança numa pessoa ou instituição confiáveis.” E acrescenta o leitor: sabe, tenho alguma intriga sobre esta dificuldade de os jornais e de os jornalistas se interrogarem a respeito desta dimensão indispensável para explicar uma das componentes que marcam a pouca atenção dos cidadãos aos seus jornais, comprometendo-lhes o futuro, ou seja, a confiabilidade entre jornais, jornalistas e o “seu” público. Fala-se sempre muito da crise das tiragens e do ineficiente grau de penetração de leitura à conquista de novos leitores, atribuindo repetidamente as causas aos factores económicos e financeiros e à usurpação das outras plataformas digitais à leitura dos jornais, mas era importante que jornais de referência como o PÚBLICO indagassem bem se não resta algo a fazer para sedimentar e aumentar a confiabilidade entre os media e o público em geral.
De facto, há dias, num colóquio levado a efeito na Casa da Imprensa, pela nova Associação de Estudos de Comunicação e Jornalismo, perguntava-se com ênfase, sem resposta pronta: afinal, que têm nas suas mãos os próprios jornais e jornalistas a fazer para não se deixarem “morrer”, para vencer esta crise?
Evidentemente, sei que, como provedor do Leitor, tenho especiais responsabilidades neste campo da confiabilidade entre o PÚBLICO, os seus jornalistas e os seus leitores. Provavelmente, por alguma imperícia ou modelo escolhido de actuação, sinto que tem sido algo limitada a abertura deste canal — provedor/leitores — para uma discussão mais aberta e intensa sobre os factores, porventura, explicativos da eventual falta de confiabilidade. Daniel Okrent, ex-director e depois primeiro provedor do The New York Times, dizia que “a defesa da credibilidade jornalística viria a ser o motor da instituição dos provedores” (Okrent, O Provedor, Lisboa, Edições 70, 2008). Por sua vez, o PÚBLICO, ao criar a figura de provedor do Leitor, reconhece que uma das competências que lhe atribui “é a de contribuir para aumentar a confiança dos leitores no seu jornal”. A relação de confiança entre os seus leitores e o jornal “é o capital mais precioso do PÚBLICO” (Estatuto do Provedor do PÚBLICO). E na responsabilidade que é preciso não deixar de atribuir aos leitores como responsáveis para que não se sintam alheios, nem cúmplices, nesta crise que dá “sinal de morte” à imprensa, baluarte indispensável na manutenção dos processos democráticos, provavelmente este canal — provedor/leitores — terá de ter um papel mais activo e eficaz. Mais do que as simples questiúnculas que nascem das discordâncias de opinião ou na precisão de informação sobre isto ou aquilo, era importante que os leitores — e que o provedor cumpra — aproveitassem este canal para debater mais aprofundadamente, porventura, as questões que colocam em crise a confiança, a confiabilidade, entre jornalistas, o “seu” jornal e os leitores.
Esta edição do PÚBLICO combinou, de forma inteligente, a densidade das questões multivariáveis a propósito da confiança, da confiabilidade, com a escolha de um director de grande popularidade que traz um atleta da estirpe de um categorizado Nelson Évora. Também reflectia o tal leitor da conversa telefónica, sem cair numa informação “popularucha” e especulativa. É necessário que um jornal de referência como o PÚBLICO combine muito bem a informação densa que traz sobre determinados temas e não se esqueça de estabelecer pontes com o grande público, porventura menos susceptível à profundidade destes temas.
Naturalmente, um dia em que contamos anos de vida é propício para introduzirmos reflexões deste tipo. Esta da consideração sobre o que está nas mãos de produtores de informação e dos leitores que querem a continuidade dos media como suportes de liberdade de pensar, exprimir e defender opinião não me parece inoportuna.
Se há sentimentos que quase todos nós temos, é uma fractura de confiança, confiabilidade, nos outros, nas instituições e nas organizações sociais, no futuro de Portugal e na governabilidade de um mundo que tem ameaças fortes em personalidades como Donald Trump. Restaurar os graus e mecanismos de confiança na dinâmica e no sentido do nosso viver é um projecto inadiável.

 

CORREIO LEITORES/PROVEDOR

 

A bastonária da Ordem dos Enfermeiros e a eutanásia

Pede-me o leitor Guilherme da Fonseca para não esconder este assunto:
“As declarações da bastonária, em programa radiofónico, sobre a eutanásia, a que a comunicação social tem dado tanto relevo, não são mais do que a revelação de uma realidade que todos conhecemos, mas preferimos ignorar. É, no fundo, uma hipocrisia que a bastonária corajosamente não escondeu e não quis esconder. E alertou-me para uma sugestão que aqui deixo: os bastonários da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Enfermeiros podiam lembrar-se de lançar um inquérito anónimo para todos os membros das ordens, para responderem a esta simples pergunta: acompanhou casos de eutanásia de suicídio assistido no exercício das funções, em especial, nos hospitais públicos?
Os resultados, sobretudo se a percentagem de respostas for elevada, poderiam contribuir para a discussão pública que está instalada e ajudar o processo legislativo que vai seguir-se proximamente na Assembleia da República.”

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