Licença para sacar

Corruptos e corruptores sempre existirão, como é óbvio. Agora, ser o próprio Estado a pôr-se a jeito desta forma é impensável – e um escândalo sem nome.

Licenças sem vencimento existem em todos os países desenvolvidos, e por excelentes razões: porque um trabalhador decide investir na formação académica, porque tem familiares doentes a necessitarem da sua presença a tempo inteiro, porque foi pai ou mãe e quer dedicar dois anos da sua vida ao filho, porque o cônjuge foi deslocado temporariamente para o estrangeiro, porque resolveu ir um ano para uma ONG, inscrever-se no serviço militar ou empenhar-se num cargo político.

Desde que usada com bom-senso e parcimónia, a figura da licença sem vencimento é uma conquista civilizacional. Sara Carbonero pediu licença sem vencimento à Mediaset para acompanhar Casillas na sua ida para o Futebol Clube do Porto. António Sampaio da Nóvoa pediu licença sem vencimento à Universidade de Lisboa para poder candidatar-se ao cargo de Presidente da República. São pedidos razoáveis, que os seus empregadores aceitaram. Mas no microclima português, o bom-senso e a parcimónia são espécies que medram com dificuldade, sobretudo na função pública. E, por isso, a licença sem vencimento foi ganhando matizes muito pouco recomendáveis.

Aliás, num país onde a obsessão pelo “quadro” é o alfa e ómega de qualquer trabalhador, ninguém avança de peito aberto para um novo emprego quando tem a possibilidade de assegurar primeiro o famoso “lugar de recuo”, reflexo evidente de uma cultura com pavor do risco. Recordo que o próprio José Sócrates, após seis anos como primeiro-ministro, e antes de partir para estudar em Paris, deu-se ao trabalho (juro!) de requisitar uma licença sem vencimento das funções de engenheiro técnico na Câmara da Covilhã. Só em Julho de 2013 pediu a exoneração dos quadros do município, apesar de já não exercer funções na câmara desde 1987.

E dá-se isto: embora a lei deixe vasto espaço para recusar a atribuição de licenças sem vencimento, a tradição da função pública parece ter instituído em certos sectores uma espécie de livre trânsito para o trabalhador desaparecer durante o tempo que quiser e voltar quando lhe apetecer. Assim chegamos ao coração deste texto: o extraordinário caso da Operação Fizz e do procurador Orlando Figueira.

O caso em si é fascinante, mas o alegado envolvimento de Manuel Vicente e as perigosas relações Portugal-Angola são apenas uma parte do fascínio, e não necessariamente a maior. Mais do que com a investigação propriamente dita, fiquei boquiaberto com a notícia de que Orlando Figueira pediu em 2012 um licença sem vencimento para ir trabalhar para o sector privado, e que ela lhe foi atribuída por unanimidade (!) pelo Conselho Superior do Ministério Público, sem sequer querer saber para onde ele ia. A gente esfrega os olhos, lê outra vez e não acredita. Um procurador com casos de milhões recebe do Estado um livre-trânsito para ir trabalhar para quem lhe apetecer, pelo tempo que desejar e mantendo o seu lugar nos quadros do Ministério Público (cereja em cima do bolo: o tempo da licença sem vencimento conta para efeitos de antiguidade).

Depois disto, confesso que fiquei mortinho por saber duas coisas. Primeira: quantos funcionários mantém o Estado no seu quadro com licenças sem vencimento, enquanto trabalham para o sector privado? Segunda: quantas dessas transferências configuram casos de vergonhosa incompatibilidade, como é obviamente este caso? Corruptos e corruptores sempre existirão, como é óbvio. Agora, ser o próprio Estado a pôr-se a jeito desta forma é impensável – e um escândalo sem nome.

Correcção: onde estava, erradamente, Conselho Superior de Magistratura, passou a estar Conselho Superior do Ministério Público.

 

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