Eles ligaram os veículos uns aos outros e todos à Internet (e isso valeu 20 milhões de euros)
No Porto, há mais de 600 veículos ligados em rede que funcionam como pontos de acesso à Internet. A tecnologia que utilizam é desenvolvida pela Veniam, uma empresa portuguesa com escritórios em Silicon Valley.
João Barros chega de fato escuro e gravata, mala de computador ao ombro, à recepção do Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade do Porto (UPTEC), depois de uma reunião importante. Apressa-se a tirar a gravata e a arregaçar as mangas da camisa branca, enquanto sobe, a um ritmo rápido, as escadas para um dos escritórios da Veniam no pólo tecnológico da incubadora de start-ups. Aos 39 anos, o presidente executivo da tecnológica portuguesa vive em Silicon Valley, nos Estados Unidos da América (EUA), e viaja até Portugal várias vezes por ano, onde aproveita para ter (ainda mais) reuniões e acompanhar o desenvolvimento técnico do produto da Veniam.
A empresa dedica-se à criação de todos os componentes necessários para transformar veículos em hotspots de wi-fi e ligá-los uns aos outros e à Internet e, recentemente, captou um investimento de 20 milhões de euros de capital de risco proveniente das “maiores operadoras de telecomunicações de França e dos EUA” (Orange e Verizon, respectivamente), a Yamaha Motors e a Cisco (“o maior fabricante de equipamentos de telecomunicações do mundo”).
Não vale a pena perdermo-nos no jargão tecnológico: a Internet das coisas em movimento tem consequências directas na qualidade de vida da população de uma cidade.
Se a Internet está em todo o lado, porque não há-de estar também nas coisas em movimento? O caso do Porto — “laboratório vivo para o desenvolvimento de novas aplicações” da Veniam, como descreve João Barros, que é também professor catedrático da Faculdade de Engenharia da UP (FEUP) — é paradigmático. A cidade tem “a maior rede veicular do mundo”: os 404 autocarros da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) estão ligados em rede, bem como os camiões de recolha de resíduos que percorrem as ruas e alguns táxis. São mais de 600 veículos que comunicam entre si e com as empresas.
Para quem viaja nos autocarros, o benefício imediato é o acesso gratuito à Internet. Para as empresas, as aplicações do sistema da Veniam traduzem-se em dados de análise de produtividade, localização ou rentabilidade. Para as cidades, idealmente, a Internet das coisas em movimento, tal como esta plataforma a aborda, pode reflectir-se no desenvolvimento de um “grande scanner urbano”, resume João Barros. O tráfego e a qualidade do ar são apenas alguns dos parâmetros que podem ser monitorizados e em torno das muitas aplicações possíveis destes dados paira o conceito de “cidades inteligentes”, áreas urbanas geridas, também, com o recurso a informações recolhidas pelas novas tecnologias. “Os dados que captamos são sobretudo físicos, não temos dados pessoais das pessoas”, sublinha, “até porque o serviço é gratuito e não requer sequer um registo”.
Ao utilizar a rede da Porto Digital, a tecnologia da Veniam canaliza 70% do tráfego através dos pontos de acesso wi-fi e 30% através da rede celular. E essa é uma das grandes vantagens apontada por João Barros: a poupança no tráfego celular, mais de dez vezes mais caro do que o tráfego da rede wi-fi. O número de dados enviados para a cloud da plataforma é maior, o que se reflecte num maior número de aplicações e análises mais sofisticadas.
Enquanto apresenta o trabalho da Veniam — que co-fundou em 2012 com Susana Sargento, Robin Chase e Roy Russell —, João Barros desce mais dois lanços de escadas até ao open space ocupado pela equipa de engenheiros e pelos serviços administrativos. Numa secretária estão pousados três relógios, à espera de serem pendurados, com três fusos horários diferentes que distam oito horas entre si. Porto, Singapura e Silicon Valley são as cidades onde a tecnológica tem actividade, numa lógica tripartida. A engenharia e o apoio técnico estão concentrados no Porto, a sede corporativa está na Califórnia e o escritório de Singapura gere as operações na Ásia. Trabalham em rede e produzem redes, a primeira das quais mantém-se em funcionamento no Porto de Leixões.
Equipa do Porto vai duplicar
Dos 28 engenheiros que ocupam as secretárias da Veniam, nove são doutorados, faz questão de frisar o presidente executivo. Os rostos, escondidos por detrás de ecrãs de computadores são maioritariamente masculinos. “Estamos a tomar medidas muito concretas relativamente a isso”, garante Barros, razão pela qual nos últimos meses sete mulheres foram contratadas em Portugal e nos Estados Unidos. Patrícia Oliveira faz parte deste grupo. Com apenas 23 anos, a tímida engenheira saiu da FEUP — cujas instalações são vizinhas do UPTEC — directamente para a Veniam, sem passar pelo processo de procura de emprego que aterroriza tantos jovens. Ainda se está a ambientar ao trabalho e à cultura da empresa mas, em vista, está já um intercâmbio com um dos outros dois escritórios da Veniam no estrangeiro. O programa “Veniam Abroad” promove a mobilidade dos funcionários, numa espécie de Erasmus aplicado ao mercado laboral.
Até ao final de 2016, a equipa do Porto deve duplicar: as áreas de hardware e software de redes vão ser reforçadas, bem como a operacional, a comercial e a de apoio ao cliente. “Excelentes profissionais e boas pessoas” é aquilo que Barros procura num possível funcionário. Isto porque o “espírito de entreajuda”, diz, é fundamental na cultura que quer imprimir na Veniam, nascida de uma parceria entre as universidades de Aveiro e do Porto e o Instituto de Telecomunicações, e onde todos se tratam por tu.
Quando se cruzou com João Barros e decidiu trabalhar na Veniam, Rui Costa só tinha visitado o Porto duas vezes. Na altura, em 2013, o engenheiro de redes e comunicações formado no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, estava indeciso em “atirar-se de cabeça para [a criação de] uma start-up ou trabalhar primeiro e ganhar experiência”. Escolheu a segunda hipótese e mudou-se para o Porto. Como o edifício do UPTEC estava ainda em construção, o escritório da Veniam acabou por ser improvisado na casa que tinha acabado de arrendar. Com 26 anos — e menos de três anos depois de ter aceite o convite —, Rui passou de responsável pela arquitectura e desenvolvimento da cloud da plataforma para director de produto.
O desafio do jovem engenheiro, agora que a start-up está em fase de evolução e expansão (scale-up), é traduzir “uma solução altamente tecnológica para um produto que as pessoas consigam perceber e enquadrar dentro do seu dia-a-dia”. Rui não vê a engenharia como uma área avançada da tecnologia desfasada da realidade. “Cada linha de código que nós escrevemos, ao fim de três meses ou alguns anos, pode estar a traduzir-se em optimização de serviços, redução de custos ou, até, num sorriso nas pessoas”. Ou seja: uma “pequena contribuição técnica” pode ter um retorno elevado. Saber quais as zonas de uma cidade com o ar menos poluído ou ter informação precisa sobre o trânsito em ruas específicas para determinar o tempo médio de espera por um transporte público são apenas dois exemplos do tal retorno elevado. A Internet das coisas em movimento, resume de modo expansivo, “aproxima a Internet das pessoas”.
De start-up a scale-up
E quando estamos a falar de “milhares de milhões de objectos, dos quais muitos vão, de facto, estar em movimento”, a começar pelos veículos que são “1.200 milhões em todo o mundo”, enumera João Barros, não é difícil perceber por que razão a solução desenvolvida pela Veniam foi alvo, nos últimos dois anos, de um investimento internacional de perto de 24 milhões de euros. “Estamos na primeira liga das capitais de risco”, brinca o presidente executivo. Em 2014, o financiamento de 3,9 milhões de euros chegou da parte das capitais de risco True Ventures, Union Square Ventures e Cane. Agora, quase dois anos e 130 reuniões depois, a Veniam atraiu “os braços de investimento de grandes empresas” multinacionais.
Nada disto teria sido conseguido sem o contributo de André Cardote. O engenheiro doutorado em redes veiculares detém parte da propriedade intelectual original da Veniam. André, de 29 anos, integra a equipa da tecnológica desde o início, na altura ainda a partir da Universidade de Aveiro, onde estudou. Desde o desenvolvimento do primeiro dispositivo da marca, ainda durante o doutoramento, passaram-se vários anos. André, que tal como Rui e Patrícia teve na Veniam o primeiro emprego, lidera agora a equipa de engenheiros. “Tem sido uma viagem híper rápida, mas fantástica”, admite.
A partir dos escritórios de Singapura, onde também há portugueses a trabalhar, o próximo passo é o lançamento oficial do serviço ao público. Nos EUA, é tempo de aguardar os resultados de vários concursos públicos e anunciar novas parcerias com frotas de veículos partilhados e transportes públicos.
Entretanto, no Porto, ocupar duas salas de uma incubadora de start-ups deixou de fazer sentido e a Primavera será tempo de mudanças. O logótipo da Veniam vai passar a estar à porta de um open space de 1000 metros quadrados com vista para a Avenida dos Aliados, com cozinha, balneários, zona de estar e salas de reuniões. A ideia é simular o ambiente de uma casa, com uma “vivência muito comunitária”. Os grupos de corrida, futebol e culinária que os funcionários formam, no Porto e no estrangeiro, comprovam a “matriz universitária” que João Barros não quer perder. “Há o mito, sobretudo nesta fase de crescimento acelerado, de que isto [o ambiente de proximidade] só é possível quando se tem uma equipa pequena, que não é escalável”, admite. O desafio, diz, é provar que o mito não passa disso mesmo.