Elogios à escola pública e filhos na escola privada
O ensino contratualizado (do estado e de iniciativa privada) é parte da solução, e não parte do problema.
A coisa vem num livro publicado em Paris em 1964, Les Héritiers, les étudiants et la culture e o Vasco Pulido Valente chamou recentemente a atenção para a simplicidade da tese geral desta obra: “a classe dominante tinha reproduzido a sua tirania transferindo o capital para a descendência; mas no mundo moderno passara a transferir o saber e não o capital. Ou seja, o seu método de reprodução mudara e o dever do verdadeiro socialista estava agora em destruir essa nova maquinação da burguesia.”
Assim, na impossibilidade de destruir numa geração os privilégios que a classe dominante herda da família, há então que destruir o carácter seletivo da escola simbolizada nos resultados dos seus projetos educativos: Acaba-se com os exames, privilegia-se o prazer em detrimento da educação e, num universo de aprendizagens discentes de quase completa ignorância, sem “capital intelectual”, os filhos da “classe social favorecida” seriam absorvidos pelo igualitarismo militante.
A insistirem nesta idiotia e a pretexto da “defesa da escola pública”, intentam há 42 anos contra as escolas do estado (veja-se por exemplo as 20 mudanças introduzidas nos últimos 16 anos no sistema de avaliação dos alunos). Depois de anos a fio a insistirem na defesa do edifício de quem quer ensinar e não no de quem quer aprender, fixam o olhar no ensino particular e cooperativo. Desta vez, a pretexto da escassez de recursos, em contrassenso, revoltam-se contra projetos educativos onde formar, mais e melhor, custa menos que nas escolas do estado. Entram por esta porta ferrugenta ignorando as teses bourdieusianas sobre as lógicas de distinção que leram em Les Héritiers: São os contratos de associação que permitem a uma “classe social desfavorecida” frequentar as escolas privadas nos mesmos moldes em que frequentariam a escola estatal, ou seja, de forma gratuita. Sem o ónus das propinas, são estes contratos que possibilitam a liberdade de escolha constitucionalmente preconizada. Acabar com estes contratos é acentuar a bipolarização do ensino entre ricos e pobres, é elitizar as escolas que não são do estado, legitimando-se assim o “capital” como acesso privilegiado a percursos escolares marcados pelo sucesso e pela distinção. Sim, porque neste alarido por 2% do orçamento do ministério da educação, qualquer pessoa com dois dedos de informação percebe que esta discussão pouco interessa a quem paga propinas de 20.000 euros/ano.
A menos que o objetivo seja esta bipolarização, a verdade é que o ensino contratualizado (do estado e de iniciativa privada) é parte da solução, e não parte do problema, no desafio honesto que aqui deixo: Criem, ou deixem criar, projetos educativos singulares e permitam que as famílias, ricas ou pobres, em igualdade de circunstâncias, escolham as escolas para os seus filhos. A partir desse dia, não haverá necessidade de apelar a lobbies de interesses políticos ou empresariais, nem de decretar o encerramento das escolas privadas ou estatais, porque as famílias, numa rede una onde coexistam várias ofertas, serão conduzidas pelo seu grau de satisfação e encarregar-se-ão de valorizar as escolas que são mais capazes.
Negar esta possibilidade é acentuar a bipolarização liderada por uma “classe dominante”, que tem ou teve os seus filhos a estudar em escolas privadas. Chamam-lhe gauche caviar na França, champagne socialist no Reino Unido, limousine liberal nos Estados Unidos, radical chic em Itália, esquerda caviar em Portugal. Fazem-no com a convicção de que um aluno, quando sai do ensino obrigatório, leva consigo pelo menos 4 legislaturas e que, neste espaço, "é preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma". Reafirmo esta convicção ao relembrar a filosofia de Dom Fabrizio Salina (em O Leopardo), que conduz a sua família através de tempos tempestuosos, mantendo o essencial da sua forma de vida.
Membro do Conselho Nacional de Educação