Bill Gates escolhe o lado do FBI contra a Apple e sondagem dá-lhe razão

Co-fundador e antigo patrão da Microsoft diz que Tim Cook está a exagerar. Defensores da posição da Apple, como a Google, o Facebook ou o Twitter, insistem que o caso é mais abrangente.

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Gates considera que o caso aplica-se apenas ao telemóvel do terrorista de San Bernardino Shannon Stapleton/Reuters

Em contraste com outras estrelas do mundo da tecnologia, o co-fundador e antigo presidente executivo da Microsoft, Bill Gates, entrou esta terça-feira na discussão entre a Apple e o FBI para se pôr do lado do governo norte-americano. Para Gates, a empresa deve ceder à ordem das autoridades e deitar abaixo a segurança do iPhone de um dos terroristas que mataram 14 pessoas no condado de San Bernardino, na Califórnia.

"É um caso específico, em que o governo está a pedir para ter acesso a informação. Não está a fazer um pedido genérico, estamos a falar de um caso em particular", disse Bill Gates ao Financial Times.

O co-fundador da Microsoft está afastado do dia-a-dia da empresa há quase oito anos e ocupa-se agora em exclusivo com os trabalhos da Fundação Bill e Melinda Gates, mas a marca que deixou no mundo da tecnologia faz com que a sua voz seja hoje tão importante como era nas décadas de 1970, 1980 e 1990.

Gates considera que a Apple está a exagerar ao dizer que a ordem de um tribunal da Califórnia, conhecida na semana passada, põe em causa a privacidade dos telemóveis de milhões de utilizadores.

"O que está em causa não é muito diferente de saber se se deveria ter ordenado às companhia telefónicas que acedessem à informação [dos seus clientes], ou se deve ser possível aceder aos dados bancários. Digamos que o banco põe uma fita à volta de um disco rígido e diz: 'Não me obriguem a cortar esta fita, senão vão obrigar-me a cortá-la muitas outras vezes'."

Este é essencialmente o argumento que o FBI usou para convencer o tribunal a intimar a Apple. Mas muitos dos actuais gigantes da tecnologia, incluindo os líderes do Facebook, do Twitter e da Google, puseram-se ao lado da Apple, com declarações públicas que defendem o argumento que Tim Cook usou numa carta aberta publicada em resposta à ordem do tribunal: "Criar uma versão do iOS que contorne a segurança desta forma iria inquestionavelmente abrir uma porta das traseiras. E ainda que o governo diga que o seu uso seria limitado a este caso, não há nenhuma forma de garantir esse tipo de controlo."

As declarações de Bill Gates em defesa do FBI surgem também em contraciclo com o que já se conhece da posição oficial dos actuais líderes da Microsoft. Apesar de a empresa não ter emitido qualquer comunicado, tanto o responsável pelas questões legais, Brad Smith, como o presidente executivo, Satya Nadella, partilharam nas suas contas no Twitter a posição oficial da coligação Reform Government Surveillance, com críticas à acção do FBI: "As empresas que integram a Reform Government Surveillance acreditam que é extremamente importante travar terroristas e criminosos e ajudar as forças de segurança a cumprir ordens judiciais relativas a informação para nos manter a todos em segurança. Mas as empresas não devem ser obrigadas a criar portas das traseiras em tecnologias que mantêm a informação dos seus utilizadores em segurança."

Em causa está o acesso a um telemóvel iPhone 5C da Apple que foi usado por Syed Rizwan Farook, o norte-americano que matou 14 pessoas no condado de San Bernardino, em Dezembro do ano passado, num ataque cometido com a sua mulher, Tashfeen Malik, uma paquistanesa que passou a maior parte da vida na Arábia Saudita.

O telemóvel pertencia às autoridades públicas do condado de San Bernardino, para as quais Farook trabalhava, e está bloqueado com um código de acesso — o telemóvel em causa não tem o sensor de impressões digitais, presente nos modelos a partir do 5S. O objectivo do FBI é obrigar a Apple a criar uma versão do seu sistema operativo (o iOS) que permita fazer três coisas: desactivar a opção que apaga todos os dados do telemóvel ao fim de dez tentativas erradas; permitir que seja possível ligar o telemóvel em causa a um computador que vai enviar milhares e milhares de combinações possíveis até acertar; e eliminar ao mínimo possível o tempo de espera entre cada uma dessas tentativas.

Programa pode cair "nas mãos erradas"
A Apple já admitiu que tem capacidade para criar esse programa, mas alega que, uma vez nas mãos do FBI, nada garante que a polícia federal não o use em outros casos (ao contrário do que diz no seu pedido ao tribunal), que não passe para as mãos de todas as agências de segurança norte-americanas, e que não seja explorado por organizações criminosas para roubar informações sensíveis dos utilizadores, como dados bancários.

"Sim, é possível criar um sistema operativo completamente novo para enfraquecer as nossas configurações de segurança, como o governo pretende. Mas é algo que consideramos ser demasiadamente perigoso. A única forma de garantir que essa ferramenta tão poderosa não será abusada e não cairá nas mãos erradas é nunca criá-la", escreveu Tim Cook num comunicado publicado no site da Apple.

Para os defensores da posição da Apple, mais do que a colaboração com as autoridades (algo que as empresas já fazem com regularidade, como foi exposto pelos documentos revelados pelo antigo analista Edward Snowden), o que está em causa é a criação de um precedente — o objectivo do governo será obter uma garantia legal para que todas as empresas sejam obrigadas a eliminar toda a segurança dos seus aparelhos electrónicos, abrindo um buraco no código para que as autoridades possam começar a fazer o mesmo sem precisarem da assistência dessas mesmas empresas.

O que vale este iPhone?
Nos últimos dias surgiram notícias que parecem dar força aos argumentos da Apple, Facebook, Google ou Twitter.

Pouco depois do atentado terrorista, as autoridades do condado de San Bernardino (proprietárias do iPhone em causa) alteraram os códigos de acesso à conta da Apple associada ao telemóvel de Syed Rizwan Farook. O FBI veio mais tarde confirmar que essa alteração foi feita com o seu conhecimento, mas o resultado comprometeu uma hipótese de conhecer o que Farook guardou no telemóvel sem ser preciso recorrer à ajuda da Apple — se esses códigos não tivessem sido alterados, talvez pudesse ser possível fazer uma cópia dos documentos para o serviço iCloud assim que o telemóvel entrasse no raio de acção de uma rede sem fios anteriormente utilizada por Farook.

É certo que seria preciso que o utilizador tivesse a funcionalidade de acesso a redes sem fio ligada, e que a função de cópias automáticas também estivesse ligada, mas a aparente falta de cuidado nos primeiros momentos da investigação levam os defensores da Apple a acreditarem que o iPhone 5C de Farook não terá nada de muito relevante — afinal, os técnicos do condado de San Bernardino conheciam os códigos de acesso associados à conta da Apple; e Syed Rizwan Farook tinha outros dois telemóveis, que destruiu e atirou para um caixote do lixo, mantendo o seu iPhone intacto.

Para além destas questões mais técnicas, o procurador de Manhattan, Cyrus Vance, já veio dizer que as suas equipas de investigação têm 175 iPhones que não conseguem desbloquear, no âmbito de casos não relacionados com terrorismo. O responsável disse que não deveria caber à Apple decidir se pode ou não pode derrubar a segurança dos seus telemóveis, e defendeu mudanças na lei: "Isto está transformado no faroeste da tecnologia. A Apple e a Google são os xerifes e não há regras", disse Cyrus Vance numa conferência de imprensa.

Na segunda-feira, o Wall Street Journal noticiou que o Departamento de Justiça dos EUA moveu mais processos em tribunal contra a Apple, para forçar a empresa a contornar a segurança de outros 12 iPhones, nenhum deles relacionado com casos de terrorismo. Os modelos em causa são ainda mais antigos do que o de Syed Rizwan Farook, e supostamente um pouco menos seguros – os defensores da Apple dizem que isto prova que as autoridades estão a tentar impor novas regras através de uma vasta ofensiva nos tribunais, e não apenas a tentar obter o desbloqueio de um iPhone num caso muito específico.

Ainda que a Apple acabe por ceder, o sistema de segurança dos seus telemóveis, principalmente os mais recentes, pode tornar-se num quebra-cabeças impossível de resolver. No site The Intercept, o programador e jornalista Micah Lee fez as contas e avançou estimativas para o tempo que demoraria a descobrir um código de desbloqueio, mesmo com um potente computador a enviar várias combinações por segundo: se o utilizador definir um código com seis dígitos, o processo pode levar 22 horas, e uma média de 11 horas; mas se o código tiver 11 dígitos, nem vale a pena esperar sentado: são 253 anos, ou uma média de 127 anos.

Maioria ao lado do FBI
A opinião de Bill Gates é partilhada pela maioria dos inquiridos pelo instituto Pew, numa sondagem realizada entre os dias 18 e 21 e publicada segunda-feira. A avaliar pelas opiniões dos vários subgrupos – desde a inclinação partidária à faixa etária –, a Apple vai ter alguma dificuldade para manter a sua posição sem sofrer alguns danos na imagem pública.

No total, 51% dos 1002 adultos com mais de 18 anos de idade que foram ouvidos nesta sondagem dizem que a Apple deve obedecer à ordem do tribunal e criar um sistema operativo específico para contornar a segurança do iPhone de Syed Rizwan Farook. Do outro lado, 38% discordam e 11% dizem não ter opinião formada.

O impacto da batalha entre a Apple e o FBI nos Estados Unidos é tal que 75% dos inquiridos dizem ter lido ou ouvido notícias sobre o caso. E do lado do FBI estão tanto eleitores do Partido Republicano como do Partido Democrata – 56% dos republicanos e 55% dos democratas.

Nas divisões por idades a defesa da posição das autoridades é ainda mais notória, porque os jovens são, tradicionalmente, mais sensíveis à defesa da privacidade. Mas na sondagem do Pew Research Center não é isso que acontece – 47% dos que têm entre 18 e 29 anos consideram que a Apple deve fazer o que o FBI pediu e que o tribunal ordenou, contra 43% que defendem o contrário.

Esse posicionamento ao lado das autoridades vai sendo reforçado à medida que as faixas etárias vão subindo – entre os inquiridos com mais de 65 anos, apenas 27% dizem que a Apple deve continuar a resistir.

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