A Coreia do Norte não é uma anedota
A dinastia Kim nunca foi irracional. Mas Kim Jong-un ligou o seu poder e o seu destino ao nuclear. A bomba serve para legitimar a sua autoridade enquanto protector da nação.
A capa da New Yorker de 18 de Janeiro representava um menino a brincar — com mísseis, tanques e bombas. Era a “criança” Kim Jong-un. “A Coreia do Norte é uma anedota e esse é o problema”, escreve Jeffrey Lewis, responsável pela não-proliferação na Administração Clinton. O olhar ocidental sobre a Coreia de Kim centra-se de facto no jovem ditador, um palhaço louco e exibicionista a brincar com bombas atómicas. Um mundo absurdo, fantasista e irracional.
“Mas os norte-coreanos não encaram [estas coisas] como absurdas”, previne Lewis. Crêem antes que o país se está a tornar numa “moderna e dinâmica potência mundial”. Kim Jong-un é popular, “com uma aura quase divina”, constata o correspondente da BBC. Há um imenso gulag na Coreia do Norte. O regime não hesita perante o terror. Mas, como verificámos noutras situações históricas, o medo não é contraditório com a sedução e a mobilização das massas por tiranias.
Um nacionalismo rácico
“Na realidade, todas as provas sugerem que a família Kim sempre foi racional — talvez até demasiado racional”, observa Dingding Chen, um analista chinês. A sua lógica é sobreviver, garantir a perenidade do regime. “Na Coreia do Norte, a família Kim é nação e o Estado”, acrescenta Dingding. “As acções do regime norte-coreano nunca foram irracionais”, corrobora Françoise Nicolas, directora do Centre Asie no think tank IFRI. “A sua capacidade de sobrevivência, a despeito de graves crises, serve de prova.”
O historiador americano Brian Myers, que ensina numa universidade sul-coreana, sublinha outra ilusão ocidental: “É errado considerar Pyongyang como a última ditadura estalinista. O ultranacionalismo é a chave para compreender o regime. E o armamento nuclear é a sua raison d’être.” Num livro intitulado The Cleanest Race: How North Koreans See Themselves — and Why It Matters (A raça mais pura: como os norte-coreanos se vêem a si mesmos — e por que é que isso importa), sublinha Myers que a visão do mundo imposta pela dinastia Kim sempre assentou “num ultranacionalismo rácico, versão coreanizada do nacionalismo japonês propagado durante o regime colonial (1910-45)”.
A sua visão do mundo, prossegue Myers, assenta na “excepcional superioridade moral da raça coreana”. É um “reino eremita” que se isola de um mundo recheado de inimigos que o querem destruir. Esta ideologia traduz-se no “Pensamento Juche” (autoconfiança ou auto-suficiência). “Longe de ser complexo, isto pode ser resumido numa frase: o povo coreano tem um sangue demasiado puro, e portanto demasiado virtuoso, para viver neste mundo demoníaco sem um grande líder paternal.”
O cálculo nuclear
A agência noticiosa norte-coreana assinalou assim o ensaio nuclear: “O espectacular sucesso alcançado pela República Popular Democrática da Coreia no teste da sua bomba-H é um grande feito histórico, um acontecimento de significado nacional que seguramente garante o futuro eterno da nação.”
É sempre difícil saber o que se passa nos bastidores do “reino eremita”. Os analistas apontam um feixe de razões para o desafio nuclear. Será uma forma de simultaneamente legitimar e consolidar o poder do jovem líder e de “santuarizar” o país, tornando credível a ameaça nuclear norte-coreana, o que faz parte da sua estratégia de sobrevivência. Muitos analistas duvidam da autenticidade da bomba-H. Mais importante do que isso é o facto de Kim ter ligado o seu poder e o seu destino ao programa nuclear.
Até há poucos anos, o programa nuclear era interpretado — e com alguma razão — como um instrumento de chantagem e negociação. Assinala Antoine Bondaz, do think thank Carnegie Endowment for International Peace, que agora “a arma atómica tornou-se numa arma identitária legitimando a autoridade de Kim Jong-un enquanto protector da nação, o carácter hereditário do regime e os sacrifícios impostos à população norte-coreana”. Nestes termos, “não se vê como possa ser possível a desnuclearização do regime, pelo menos a curto prazo”.
A par disto, o teste ilustrou a ineficácia das sanções sobre um país isolado que, ao contrário do Irão, pouco tem a perder. Tratou-se, por fim, de um desafio aberto à China, o país de que a sua economia realmente depende. Pyongyang não hesitou em pôr em causa os interesses nacionais chineses, reafirmando a sua independência. Escreveu há anos o sinólogo Minxin Pei: “Os norte-coreanos são ferozmente nacionalistas e detestam ser vistos como uma ‘província tributária’ da China.”
Enfim, o teste abriu uma nova crise nas relações sino-americanas, o que muito agrada a Pyongyang e pode vir a ter nefastas e imprevisíveis consequências.
O dilema da China
Paira há décadas sobre as potências asiáticas o fantasma de um colapso da Coreia do Norte. Americanos e sul-coreanos têm planos de contingência para intervir no Norte em caso de desegregação do regime e do exército, de grande desastre humanitário e, sobretudo, perante o risco do roubo de urânio ou de uma bomba. Tal intervenção teria um efeito sísmico sobre a China que seria tentada a antecipar-se. Pequim teme uma vaga de milhões de refugiados a atravessar a sua fronteira. E a Coreia do Norte é para a China um “Estado tampão” entre a sua fronteira e as tropas americanas estacionadas no Sul.
O cenário da reunificação coreana é cada vez mais longínquo, excepto em caso de colapso do Norte. Mudaria drasticamente os equilíbrios estratégicos na Ásia Oriental. Por razões diferentes, não interessa à China, aos EUA, ao Japão e suscita cada vez menos interesse na Coreia do Sul.
Pequim e Washington opõem-se ao nuclear norte-coreano mas divergem nos seus interesses estratégicos. Só a China pode aplicar sanções drásticas. A economia de Pyongyang em quase tudo depende da China, da alimentação ao petróleo. Mas Pequim teme que tal possa levar à desestabilização da Coreia do Norte. Para Pequim, o risco de desestabilização do Norte é uma ameaça maior do que o nuclear. Para Washington e Seul, é o inverso: a nuclearização do Norte é uma ameaça maior do que a desestabilização.
Para desespero de Pequim, Kim conhece bem este dilema e desafia o seu protector. Paradoxalmente, Pequim parece refém de Pyongyang. E Pyonyang sabe que as tensões sino-americanas estão a crescer.
O teste nuclear teve já uma grave repercussão para Pequim. Cimentou a aliança entre Washington, Tóquio e Seul. Pior do que isso: levou Seul a pedir a instalação do sistema de defesa antimíssil THAAD que, segundo Pequim, afecta a credibilidade da sua dissuasão nuclear. Anota ainda o analista australiano Peter Hartcher: “Para os países da Ásia-Pacífico, os EUA podem ser uma superpotência diminuída mas são ainda uma superpotência. (...) A China tem aliados, enquanto os EUA estão no centro de um sistema de alianças. Este sistema é maior do que a soma das partes.”
Qualquer estratégia eficaz para deter o nuclear norte-coreano passa por Pequim. Ou seja, muito depende da leitura que a China fizer da crise em curso. Em breve saberemos.