Como é que nunca ouvimos a música cinema de Tariverdiev?
Dizem-no da dimensão de Nino Rota ou Michel Legrand. Foi um dos mais famosos compositores russos e a sua música faz parte da cultura popular. Fora do seu país, porém, mantém-se um desconhecido. Film Music chega para acabar com isso.
Tinha 25 anos. Entrou sala dentro, “olhos grandes e sorrindo como alguém saído de um filme italiano”. Aproximou-se dos colegas de universidade e apresentou-se sem perder tempo, sem proferir sequer o nome que lhe fora dado a 15 de Agosto de 1931, data do nascimento em Tbilisi, Geórgia. “Ouçam, rapazes, somos todos génios aqui, não somos? Então, vamos fazer filmes geniais. Eu ajudo-vos”.
Mikhail Kalik, que formaria uma dupla profícua com Mikael Tariverdiev (era esse o seu nome), o primeiro realizando, o segundo assinando as bandas-sonoras, descreve assim o primeiro encontro com o velho amigo desaparecido em 1996, vítima de ataque cardíaco enquanto descansava na localidade balnear de Sochi, no Mar Negro. Lemo-lo num texto incluído em Film Music, belíssima caixa de três vinis (existe também uma edição em CD duplo) que serve como introdução à vasta obra para cinema de Tariverdiev (do seu currículo constam cerca de 130 filmes).
Todos saberão trautear as melodias de Ironiya sudby (A Ironia do destino, realizado em 1976 por Eldar Ryazanov), filme que, na Rússia, onde passa na televisão todos os Natais, tem o mesmo estatuto de que goza nos Estados Unidos Do Céu Caiu uma Estrela, de Frank Capra. Também é obviamente impossível ignorar as canções de Semnadtsat' mgnoveniy vesny (Dezassete momentos da Primavera), a mais famosa série televisiva russa, realizada em 1973 por Tatyana Lioznova e que transformou o actor Vyacheslav Tikhonov no James Bond soviético. Isto, claro, sem esquecer o trabalho inicial com Kalik, nos anos 1960, digressões poéticas em som e imagem de que resultaram Do Svidaniya Malchiki! (Adeus, Rapazes!, 1964) ou Chelovek Idyot Za Solntsem (Um Homem Segue o Sol, 1961). É como dizemos, mesmo que não identifiquem o autor, todos reconhecem esta música.
Foi isso que percebeu Stephen Coates, dos britânicos Real Tuesday Weld, banda que funde electrónica com um imaginário de swing e cabaret de outros tempos, quando há quatro anos, de passagem invernal por Moscovo, se sentou numa mesa de café. A sua atenção concentrou-se primeiro na neve que caía lá fora. Depois, o cenário começou a misturar-se com o som que preenchia o espaço. “A música que ouvi é a primeira do disco [Boys and the sea, de Adeus, Rapazes!], belíssima, como que assombrada. Parece vir de outro mundo”, recorda ao telefone. “Era especial, inconfundivelmente russa, e eu fiquei imerso no simples prazer de ouvir. Quando somos crianças não ouvimos música pensando como é feita, com que instrumentos ou ao que soa. Não pensamos. Ouvimos simplesmente”. Culpa do trabalho diário a gravar, produzir ou editar música, há muito que Stephen Coates já não era capaz dessa inocência. Perguntou à empregada de mesa o que ouviam. “É dos velhos tempos. Toda a gente conhece” - na Rússia, esclareçamos para não deprimir os que já se preparam para lamentar a ignorância.
Film Music, uma parceria entre a Antique Beat, pequena editora de Coates, e a britânica Earth Recordings, é o resultado da inesperada descoberta de Coates em 2011. “Fui-me apercebendo quão famosa era a música de Tariverdiev no seu país e achei que era de loucos que não fosse conhecida no estrangeiro. Considero o seu trabalho do mesmo estatuto do de Nino Rota, Michel Legrande, Ennio Morricone ou John Williams. Não é simplesmente um compositor importante na Rússia, é um compositor importante na história da música para cinema”.
“Eu sou uma árvore”
Um Homem Segue o Sol acompanha uma criança que corre pela cidade, empurrando um pneu, descansando junto a uma fonte, passando por um homem do realejo. Tem a força poética, a inocência e o deslumbramento da infância. A acção de Adeus, Rapazes! decorre nos anos 1930 e acompanha as férias de três amigos entusiasmados com o futuro que virá, quando forem integrados no exército e, tornados adultos, se libertarem da autoridade da família – que o futuro não será o que sonham, mostra-o Kalik em flash-forwards que mostram a destruição da II Guerra Mundial, as cidades destruídas e os campos de concentração, contraste tornado ainda mais pungente pela música de Tariverdiev, doce trautear quase sussurrado e piano de uma melancolia desarmante.
Dezassete Momentos da Primavera é uma série televisiva que segue os passos de um espião soviético na Alemanha Nazi - o sucesso foi tal que as ruas se esvaziavam e a criminalidade diminuía drasticamente durante o tempo que duravam os episódios. Em A Ironia do Destino encontramos uma comédia romântica de enganos e desencontros que se mantém hoje, 40 anos depois da estreia, como verdadeira marco da cultura popular russa. São quatro obras bastante diferentes entre si, quer na temática, quer na estética. Contudo, ouvimos a música que Tariverdiev criou para elas (reunidas compõem a porção mais generosa de Film Music) e, sem precisarmos de quaisquer imagens, há uma identidade que sobressai.
Mikael Tariverdiev dizia viver duas vidas. Umas era o cinema, a outra a que vivia diariamente, criando música para si mesmo. Tendo em conta o vasto trabalho que desenvolveu no universo da clássica (ópera, bailado, concertos para órgão, as composições para poesia contemporânea), arriscaríamos que este compositor que tinha por mestres Aram Khachaturyan e Shostakovich, que foram seus professores, Prokofiev, Mozart, Schubert e Bach, teve mais que essas duas vidas. Certo é que, em Film Music, a diversidade das abordagens não esconde um mesmo olhar, um temperamento que se manifesta, coerente, do princípio (a primeira gravação é de 1960) ao fim (a última tem a data de 1989).
Ouvem-se as peças para piano e voz, em que o popular e o erudito se reúnem num só, e ouvem-se as contaminações jazz, fascínio de Tariverdiev na década de 1960. Viajamos nas melodias guiadas pelo acordeão, apercebemo-nos do gosto pela chanson francesa, balançamos com o lento vogar das valsas e vemos abrir-se um céu estrelado, mágico, quando se anuncia o vibrafone. Nas canções a que emprestou a sua voz, mas também nos instrumentais e nas peças cantadas por outros, como Alla Pugatcheva, que se tornaria depois uma estrela da música russa, sobressai essa majestosidade intimista que Stephen Coates classifica como “mistura de nostalgia assombrada com uma sensação de antecipação do futuro”.
Perguntaram-lhe um dia quem era Mikael Tariverdiev. “Sou uma árvore”, respondeu – os seus ramos podem transformar-se, o seu tronco pode engrossar, frutos dará certamente, mas as raízes, fortes, mantêm-no firme no chão que escolheu e ao qual não pode escapar.
A liberdade individual de Tariverdiev
Mikael Tariverdiev foi no seu tempo uma personalidade reconhecida pelos seus pares, respeitada pelo regime político e idolatrada pela população. Presidiu à Guilda dos Compositores do Sindicato Soviético de Cinema e foi distinguido como Artista do Povo da Rússia em 1986. Em 1975, viajou até aos Estados Unidos para receber um prémio da American Music Academy, a gala concorrente dos célebres Grammys.
Ao investigar-lhe a biografia, duas questões se levantam. Como é possível que o seu nome continue em grande parte desconhecido no Ocidente? E como conseguiu Tariverdiev impôr o seu espírito independente, em lugares tão destacados, sem se comprometer? Quanto à primeira, Coates culpabiliza o ambiente criado pela Guerra Fria, que condicionava fortemente o olhar que se tinha sobre o outro lado do Cortina de Ferro. “Um artista dissidente que se manifestasse contra o regime comunista seria levado muito a sério no Reino Unido ou nos Estados Unidos. Foi o que aconteceu com Solzenhistyn, Boris Pasternak ou Shostakovich. Se não fosse dissidente, seria ignorado. Vivíamos a Guerra Fria e também tínhamos no Ocidente toda a nossa propaganda. Para além disso, é preciso ter a noção que quando dizemos que conhecemos o cinema russo estamos a falar de uma pequena porção dele. Não vendo os filmes [com banda-sonora de Tariverdiev], não tivemos oportunidade de ouvir a sua música”.
No que à segunda questão diz respeito, as palavras inscritas no livro que acompanha Film Music pela viúva do compositor, Vera Tariverdiev, ajudam a formular uma resposta. “Quando penso naqueles tempos dos anos 1960 (um breve período de renascimento na União Soviética), naqueles que emergiram e se tornaram importantes nas artes na época, quando penso nos seus sentimentos, nas suas descobertas, nos seus sucessos, e até nos seus falhanços, apercebo-me que o mais importante não era a política, não era lutar contra o regime ou lutar por um objectivo ou ideal político”, destaca. “O fundamental era o auto-conhecimento, a possibilidade de trabalhar e de se expressarem, o desejo de comunicar em favor de uma liberdade individual que era, acima de tudo, uma liberdade interior”.
Mikhail Kalik teve vários filmes retidos pela censura e, praticamente impossibilitado de trabalhar, abandonou a União Soviética e fixou-se em Israel em 1970. Mikael Tariverdiev viu o pai, administrador do Banco Central da Geórgia, ser preso e encerrado num campo, obrigando mãe e filho a viverem algum tempo escondidos das autoridades. Já adulto, foi proibido de viajar para o estrangeiro durante vários anos, consequência de se ter solidarizado com Kalik quando este foi impedido de se deslocar a Paris para receber um prémio cinematográfico. Escreve Mikhail Kalik em Film Music: “Claro que sabíamos onde vivíamos; tínhamos que iludir as autoridades para conseguir o que quer que fosse. Ainda assim, éramos livres no nosso íntimo. No processo de trabalho, tenho a memória muito clara de que nos sentíamos completamente livres”.
Quando saiu do café moscovita onde descobriu Tariverdiev, Stephen Coates levava consigo um CD oferecido pela empregada de mesa. Ouviu-o vezes sem conta nos meses seguintes. Desejoso de conhecer mais, comunicou-se com um site dedicado ao compositor. Respondeu-lhe Vera Taraverdiev. O encontro que se seguiu em Moscovo marcou o início do processo que conduziu à edição de Film Music, a primeira das edições que Coates planeia dedicar a Tariverdiev (fala-nos, entusiasmado, de umas “magníficas sessões de improvisação jazz”).
Em 2014, estava no apartamento dos Tariverdiev, mantido praticamente intocado desde a morte de Mikael. No seu estúdio caseiro, recorrendo ao seu velho gravador de fita húngaro, Stephen Coates, o engenheiro de som Konstantin Chernozatonsky e o fotógrafo Paul Heartfield, ouviram, seleccionaram, editaram. “Foi uma experiência muito emotiva, porque temos a sensação de que ele ainda está lá. Sente-se o seu espírito, mas não de uma forma estranha. Esta não é uma história de fantasmas”.
Uma semana depois, tratadas e compiladas as mais de 50 faixas que compõem Film Music, a missão de Stephen Coates estava cumprida. Ouvir esta música agora é um mistério que enternece, uma descoberta que fascina, uma intimidade que se desvenda. Chegou-nos com 40 anos de atraso, mesmo a tempo de se tornar na nossa banda-sonora para 2016.