Hillary, we’ve had a problem
Donald Trump foi avassalador no New Hamsphire e complicou ainda mais a vida aos líderes do Partido Republicano, que procuram um candidato mais moderado. Bernie Sanders e a sua “revolução política” trucidaram Hillary Clinton, que fica com um problema maior do que alguma vez imaginou.
A máquina poderosa e supostamente infalível que iria levar Hillary Clinton em ombros até à nomeação no Partido Democrata bem pode tratar em público a derrota nas primárias no estado do New Hampshire como uma pequena pedra que já esperava encontrar nesse caminho, mas a realidade tem uma opinião diferente: com uma vantagem de 22 pontos percentuais, o senador Bernie Sanders projectou o seu discurso contra Wall Street muito para além do que alguém poderia ter imaginado há apenas alguns meses, e mostrou que a batalha pode estar apenas a começar. Do outro lado, no Partido Republicano, o magnata e estrela da televisão Donald Trump provou que consegue teletransportar para as mesas de voto os apoiantes que ouvem fascinados os seus discursos, e venceu de forma tão confortável que já soam a ridículo as notícias que o davam como um candidato com prazo de validade.
Tal como aconteceu na semana passada, quando o estado do Iowa abriu o longo processo que vai ditar os nomes dos candidatos dos dois maiores partidos à Casa Branca, as eleições primárias no estado do New Hampshire também estão no grupo das que pouco interessam para as contas finais – com apenas 1,3 milhões de habitantes, o New Hampshire só distribui 23 delegados pelo Partido Republicano e 32 pelo Partido Democrata, na imensidão de mais de mil que são necessários para garantir uma nomeação no primeiro caso e mais de dois mil no segundo.
Mas a tensão acumulada por todos – candidatos, media, eleitores que ainda se interessam por eleições – durante vários meses de debates e anúncios nas televisões e nas rádios liberta-se assim que os primeiros votos começam a ser contados, e o Iowa e o New Hampshire tornam-se o centro dos Estados Unidos durante pouco mais de uma semana. Mais do que para contar delegados, os candidatos precisam destes dois estados para enviar sinais ao resto do país – para que os eleitores percebam quem confirma o favoritismo ou quem ganha um inesperado impulso, mas também quem conclui que o melhor seria desistir o mais rapidamente possível para poupar milhões e poupar-se a uma humilhação.
Não se pode dizer que o domínio arrasador de Bernie Sanders e Donald Trump no New Hampshire tenha sido inesperado quando visto à luz das sondagens mais recentes, mas recuemos até 5 de Maio e 21 de Junho de 2015, cinco dias depois de um e outro terem anunciado as suas candidaturas – Sanders era apenas uma pequena mancha no mapa do Planeta Hillary, com menos 40 pontos na média das sondagens, e Trump estava sete pontos atrás de Jeb Bush, com a dificuldade acrescida de ter também à sua frente Marco Rubio, Rand Paul e Scott Walker.
Menos de um ano depois, as votações no Iowa (através do sistema mais fechado de assembleias de voto, ou caucus) e no New Hampshire (verdadeiras primárias, mais abertas do que os caucus) fizeram mais do que comprovar o que as sondagens têm indicado, e deixaram o chamado "establishment" do Partido Republicano e do Partido Democrata em sentido. Em ambos os casos bateram-se recordes de afluência às urnas, o que muitos analistas têm visto como um sinal de que os descontentes e desiludidos estão finalmente a tentar mudar o que consideram estar mal – e é inquestionável que os descontentes e desiludidos estão com Donald Trump e com Bernie Sanders, ainda que, muito provavelmente, por razões opostas; em segundo lugar, os números do senador de 74 anos entre o eleitorado mais jovem foram esmagadores em comparação com Hillary Clinton – Bernie Sanders recebeu 84% dos votos dos eleitores entre os 17 e os 29 anos no Iowa (sim, no Iowa os jovens de 17 anos podem votar nos caucus) e 82% dos votos dos eleitores com menos de 30 anos nas primárias do New Hampshire.
Não foi por isso uma surpresa que os apoiantes da prometida “revolução política” e da mensagem mais à esquerda de Bernie Sanders o tenham recebido em euforia na Escola Secundária de Concord, a capital do New Hampshire, para ouvirem o seu discurso de vitória.
“Juntos enviámos a mensagem que vai chegar de Wall Street a Washington, do Maine à Califórnia. A mensagem de que o governo da nossa grande nação pertence a todas as pessoas, e não apenas a um punhado de ricos que contribuem para as campanhas”, afirmou o senador do Vermont, perante o delírio da assistência.
Entre os agradecimentos a Hillary Clinton, por lhe ter telefonado imediatamente a seguir ao fecho das mesas de voto para lhe dar os parabéns, e as críticas aos candidatos da “direita do Partido Republicano”, Bernie Sanders apontou ao seu alvo preferido: os multimilionários que têm “enormes descontos nos impostos” e os “mesmos políticos de sempre”.
“Esta noite dissemos ao establishment político e económico deste país que o povo americano não irá continuar a aceitar um sistema de financiamento de campanhas corrupto que está a minar a democracia americana, e não iremos continuar a aceitar uma economia fraudulenta em que os americanos comuns trabalham mais horas por salários mais baixos, enquanto quase todos os rendimentos e riqueza vão para os 1% que estão no topo.”
É um discurso de mudança, mais radical e porventura menos cool do que o de Barack Obama em 2008, mas ainda assim um discurso de esperança, que toca em cheio no coração de muitos jovens – o que falta a Bernie Sanders é que a sua “revolução política” comece a conquistar os menos jovens, os negros, os hispano-americanos, e muitas outras fatias do eleitorado que Hillary Clinton dá como garantidas já a partir dos caucus no Nevada, a 20 de Fevereiro, e principalmente nas primárias da Carolina do Sul, sete dias depois.
“Eu sei o que é sofrer uma contrariedade. E aprendi com a experiência que o que importa é se nos conseguimos levantar, e não se somos derrubados”, disse Clinton na mensagem enviada aos seus apoiantes a partir do New Hampshire, levando depois o seu olhar posto no futuro para o Twitter: “Isto é apenas o começo. Lutámos muito por cada voto – agora vamos levar esta campanha a todo o país.”
Logo após o anúncio dos resultados, coube ao director da campanha de Hillary Clinton, Robby Mook, desvalorizar a magra vitória no Iowa e a pesada derrota no New Hampshire – e é verdade que Bernie Sanders vai ter de lutar muito para provar que a sua aparente ascensão não passa de um breve estado de graça.
“Apesar de serem importantes, os primeiros quatro estados representam apenas 4% dos delegados necessários para garantir a nomeação; os 28 estados que votam em Março vão atribuir 56% dos delegados necessários para ganhar”, frisou Mook, acentuando depois as particularidades dos estados que já votaram: “Enquanto os eleitorados no Iowa e no New Hampshire são maioritariamente rurais/suburbanos e predominantemente brancos, os estados que votam em Março reflectem melhor a verdadeira diversidade do Partido Democrata e da nação – incluindo grandes populações de eleitores que vivem em grandes cidades e pequenas localidades, e eleitores com uma abrangência muito maior de raças e religiões.”
No lado do Partido Republicano, a mensagem de descontentamento parece ter encontrado de forma definitiva o seu rosto preferido – depois do pequeno contratempo no muito conservador Iowa, onde ficou atrás do ultraconservador Ted Cruz, o magnata do imobiliário Donald Trump não deu hipóteses a ninguém no mais independente New Hampshire.
Com quase 90% dos boletins contados nove horas após o fecho das mesas de voto, Trump tinha mais do dobro da vantagem sobre o segundo, o surpreendente governador do Ohio, John Kasich – 35,1% contra 15,9%.
Se o Iowa alimentou a esperança de que o chamado "establishment" poderia rapidamente encontrar o seu grande candidato para impedir que o populista Donald Trump garantisse a nomeação, o New Hampshire veio novamente baralhar e voltar a dar.
Depois de uma péssima prestação no debate do fim-de-semana, em que parecia um robô a debitar sempre as mesmas frases ensaiadas, o jovem senador Marco Rubio levou uma lição no New Hampshire e voltou para o meio da pequena multidão que se acotovela para cair nas graças dos líderes do partido e dos principais financiadores. Não soube aproveitar o surpreendente terceiro lugar no Iowa e caiu para a quinta posição no New Hampshire, atrás de Donald Trump, John Kasich, Ted Cruz e Jeb Bush. Mais abaixo só o governador de Nova Jérsia, Chris Christie – que, curiosamente, tinha feito o papel de atirador furtivo contra Marco Rubio no debate do fim-de-semana –; a ex-presidente executiva da Hewlett Packard Carly Fiorina; e o antigo neurocirurgião Ben Carson.
Trump venceu e pôde assim usar várias vezes uma das palavras que mais gosta de repetir, para além de “muro”: “vencer”.
“Vamos tornar este país tão forte... Vamos começar a vencer outra vez. Como país, não vencemos no comércio; não vencemos com os nossos militares, não conseguimos derrotar o ISIS. Não vencemos em nada. Vamos começar a vencer outra vez, e vamos vencer tanto, vocês vão ser tão felizes, vamos tornar a América grande outra vez, talvez maior do que alguma vez foi. Agora vamos para a Carolina do Sul! Vamos vencer na Carolina do Sul!”
Mas Donald Trump não venceu apenas no New Hampshire por ter sido o candidato mais votado – tão importante como isso foi a ordem em que os outros candidatos do Partido Republicano terminaram.
Para já, o magnata consegue manter-se num patamar só dele, tendo visto Marco Rubio descer vários degraus na luta pela construção de um adversário do establishment, que precisa urgentemente de moldar uma espécie de Transformer a partir de quatro candidatos – a esperança chamada Rubio perdeu gás; John Kasich ficou em segundo, mas dificilmente terá fôlego suficiente para uma campanha nacional; e Chris Christie já disse que vai para casa pensar na vida, antecipando uma desistência antes das primárias na Carolina do Sul.
Sobra Jeb Bush, que fica ombro a ombro com o ultraconservador Ted Cruz na luta pelo terceiro lugar no New Hampshire e faz uma prova de vida que muitos já julgavam impossível. Com um resultado positivo no New Hampshire, muitos milhões ainda no bolso e um dos apelidos mais poderosos da América no nome, Jeb Bush pode alimentar a esperança de reviver aquela sensação que Hillary Clinton tenta agora segurar com todas as forças – a de que o nome e a experiência em cargos executivos na política ainda contam mais do que a desilusão e o descontentamento.