Défice estrutural: magia negra

Alguém sabe exactamente como se calcula o indicador que determina as nossas vidas? Se tiver a paciência necessária para ler este texto, gostaria de tentar provar a seguinte tese: o saldo estrutural é uma abstracção teórica, de impossível verificação.

Muito se tem falado sobre o défice estrutural nos últimos dias. Parece que dele depende a aprovação, ou não, do Orçamento do Estado por Bruxelas. Grande parte do debate parece ter contornos técnicos, com a direita a acusar o Governo de "maquilhar" as contas do défice estrutural. Mas será que alguém sabe exactamente como se calcula o indicador que determina as nossas vidas? Se tiver a paciência necessária para ler este texto, gostaria de tentar provar a seguinte tese: o saldo estrutural é uma abstracção teórica, de impossível verificação, que confere às instituições europeias um poder discricionário sobre os países da zona euro. É, por isso, como não podia deixar de ser, uma medida puramente política.

Vamos por partes.

Primeiro: o que é o saldo estrutural?

É uma outra forma de medir aquilo a que normalmente chamamos "o défice", ou seja, o saldo orçamental nominal, que resulta da diferença entre as despesas totais e as receitas totais de um Estado num determinado ano.

O saldo estrutural retira do saldo nominal dois tipos de efeitos: o efeito do ciclo económico e o efeito de medidas extraordinárias (que não podem ser repetidas, chamadas as "medidas one-off") [1]. De outra forma:

SALDO ESTRUTURAL = SALDO NOMINAL – MEDIDAS EXTRAORDINÁRIAS – EFEITO CICLO

Segundo: como é que funciona?

Imaginem o seguinte exemplo: Estamos num período de crise. O PIB está a cair face àquilo que seria o seu "potencial", o Estado tem de fazer despesas com o subsídio de desemprego e outras medidas associadas à recessão económica. Por outro lado, as receitas com impostos estão a descer, porque há mais desemprego e menos actividade económica. Para piorar, é necessário injectar dinheiro na banca.

Neste caso, a intuição do saldo estrutural diz que, embora o défice nominal esteja a aumentar (mais despesas e menos receitas), esse aumento deve-se ao ciclo económico e a medidas extraordinárias, factores que voltarão ao normal quando a economia recuperar. Nesse caso, o aumento do défice nominal não tem reflexo no défice estrutural.

Agora imaginem outro exemplo: a economia encontra-se a crescer a uma taxa constante, mas há um governo que decide, politicamente, que é necessário investir mais na Educação, ou na Cultura, ou na Saúde. Ou baixar um imposto. Nesse caso, estas medidas são contabilizadas no défice estrutural.

Este é, na verdade, o primeiro problema do liberalismo autoritário: não deixa lugar para as escolhas democráticas.

As regras de Bruxelas ditam que, dependendo do país, o saldo deve estar no intervalo entre -0,5% e -1% do PIB.

Este é o aspecto dos saldos estruturais um pouco por toda a zona euro ao longo dos últimos anos

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Conclusões óbvias: os saldos estruturais são tudo menos estáveis; manter um défice estrutural constante entre -0,5% e 1% é tarefa impossível para quase todos os países.

Terceiro: como é que se calcula?

Esta é a parte mais complicada. Nada do saldo estrutural é observável. Todas as suas componentes são conceitos abstractos, estimados por modelos económicos que existem apenas no papel. Voltemos à fórmula acima:

SALDO ESTRUTURAL = SALDO NOMINAL – MEDIDAS EXTRAORDINÁRIAS – EFEITO CICLO

Vamos parcela a parcela.

 – SALDO NOMINAL: esta é fácil. O saldo nominal é uma medida contabilística e observável. É calculada pelo INE e resulta, genericamente, da diferença entre todas as despesas e todas as receitas do Estado.

MEDIDAS EXTRAORDINÁRIAS o problema aqui está na classificação do que é extraordinário e o que é estrutural. O melhor exemplo será o deste Orçamento:

  • O anterior Governo classificou a sobretaxa do IRS como uma medida extraordinária. A sua reversão não devia por isso contar como estrutural, mas também como extraordinária. É óbvio, mas Bruxelas e exige que a redução da receita com a eliminação da sobretaxa seja considerada como "estrutural", aumentando assim o défice estrutural.

  • O anterior Governo classificou os cortes nos salários da função pública como "estruturais", ou seja, uma medida permanente. A Comissão Europeia aceitou, mas o Tribunal Constitucional sempre disse que os cortes só podiam ser extraordinários. O Governo actual defende que a reversão de cortes temporários é uma medida extraordinária e que o problema estava na classificação anterior. Mas Bruxelas não aceita.

  • O anterior Governo conseguiu reduzir o défice de 2015 através da antecipação de um conjunto de receitas fiscais futuras, ou de eventos que só podiam acontecer uma vez. Exemplo? A contribuição que os bancos pagam para o fundo de resolução europeu no valor de 138 milhões de euros. Esta contribuição deveria ter sido cobrada no primeiro trimestre de 2016 e entregue a Bruxelas, o que teria um efeito neutro nas contas públicas. Em vez disso, o anterior Governo cobrou toda a receita em 2015, aumentando as receitas do Estado. Agora, em 2016, esse valor será entregue a Bruxelas, o que levará a um aumento da despesa. Não deveriam ser ambas medidas temporárias? Claro que sim, mas Bruxelas não pensa bem assim.

  • É claro que a decisão sobre o que é ou não extraordinário depende, em última instância, de quem tem mais força para negociar.

 – EFEITO CICLO: aqui a coisa complica-se. Este efeito calcula-se em vários passos:

  • PIB Potencial: é um indicador teórico que, depois de estimado, nos deveria dar uma ideia do que seria o PIB que o país conseguiria atingir, se todos os recursos fossem utilizados, ou seja, se a economia funcionasse de acordo com a sua capacidade total [2]. Há várias formas de estimar esta medida, a mais usada obtém-se a partir de uma função de produção, uma coisa com este aspecto (ignorem se assim entenderem):

    Y = (UL LEL ) α (UKKEK) 1– α = Lα K1– α TFP

O que nos diz é que o Y, PIB potencial, está relacionado com o emprego L, numa proporção de α, com o K, numa proporção de 1-α e da Produtividade Total dos Factores (TFP). Vamos um a um:

  • i. Trabalho (L): primeiro identifica-se a oferta de trabalho (ou seja, o numero de trabalhadores disponíveis) e depois estima-se a NAWRU (non-accelerating wage rate of unemployment). Supostamente a NAWRU é a taxa de desemprego "natural" na economia (ou seja, o nível de desemprego expurgado do efeito do ciclo). Como no caso do PIB Potencial, a NAWRU é um conceito que só existe nos modelos, não sendo observável estatisticamente, e o seu cálculo está envolto na maior controvérsia [3]. Mas vejamos alguns impactos práticos: imaginem que, por causa da emigração, a mão-de-obra disponível diminui, ou, por algum caso, a taxa de desemprego natural aumenta. Nesse caso o PIB Potencial é menor. Se o PIB Potencial é menor, a sua diferença para o PIB real é também menor. Logo, há menos "efeito de ciclo" para expurgar do saldo nominal e, como consequência, o défice estrutural aumenta. E tudo isto sem que nada tenha acontecido na economia ao nível orçamental. É o pesadelo que se sobrepõe à realidade.

Agora reparem no que aconteceu em Portugal segundo os dados da AMECO. Em 2015 a taxa de desemprego em Portugal já estará no seu nível "natural". Estranho, não é?

  • ii. Capital (K): em geral mede-se usando todo o stock de capital, expurgado do seu desgaste anual, ou depreciação. O problema não está só em estimar a depreciação do capital, mas em decidir o que é capital: por exemplo, conta apenas capital físico (edifícios e maquinaria) ou também humano (aptidões, conhecimento)?; como ponderá-lo, ou seja, qual o efeito de cada tipo de capital no PIB Potencial?; e como estimar as transferências de capital entre diferentes sectores na economia?

  • iii. Produtividade dos Factores (TFP): também não é coisa fácil, já que basicamente procura medir o impacto de aumentos de produtividade no PIB, que pode vir de inovações técnicas, mudanças organizacionais, mudanças sociais, etc. Como se mede então? Na verdade, aplicando um filtro estatístico a uma série do resíduo de Solow. O que é o resíduo de Solow? Bom, parte de um modelo macroeconómico antigo em que Solow tentava explicar o crescimento da economia com base no trabalho e capital. Como em qualquer regressão (técnica econométrica) do género, há uma parte que o modelo não consegue explicar que se chama resíduo. Este resíduo é então interpretado como o crescimento económico que não vem da acumulação de factores de produção (L e K), ou seja, a produtividade. Escusado será dizer que estimar este modelo exige assumir uma série de outras previsões e modelos económicos que, eles próprios, precisam de estimativas.

Ainda se lembram onde íamos? Exacto, no cálculo do PIB Potencial, que será a conjugação destas três difíceis variáveis: Trabalho, Capital e Produtividade. É difícil reproduzir a metodologia que a Comissão Europeia utiliza, por isso, na verdade, a Comissão Europeia é dona do PIB Potencial.

Depois disto é necessário calcular o Output Gap.

  • Output Gap: é a diferença entre o PIB verificado (ou previsto) e o PIB Potencial. Esta diferença dá-nos uma ideia da fase do "ciclo" em que estamos. Se o PIB verificado estiver mais longe do PIB Potencial, então a economia está em crise. Qual é o problema? Imaginem que, por um dos problemas mencionados acima, as estimativas para o PIB Potencial descem. Então, automaticamente, o Output Gap desce também, e o défice estrutural aumenta.


São estas as previsões de longo prazo que constavam do Programa de Estabilidade e Crescimento (2015-2019):

Segundo este gráfico, a partir de 2020, sempre que a economia estiver a crescer a mais de 1% estará em "sobreaquecimento", e por isso o défice estrutural vai aumentar automaticamente por efeito do PIB Potencial. Mas vejamos de outra forma, mais uma vez usando os dados do PEC 2015-2019.

Do ponto de vista das taxas de crescimento, desde 2014 que a economia está "sobreaquecida", já que o PIB cresce muito mais que o Potencial, o que prejudica, como já foi dito, o saldo estrutural.

Finalmente

  • Um "ponderador": que nos dá o efeito que o Output Gap, que o ciclo, tem no saldo nominal. Chama-se "Cyclical Adjustment Parameter" calculado a partir da semielasticidade (através de uma derivada parcial) do saldo nominal em relação ao Output Gap – ou seja, teoricamente, como é que o saldo varia em função de alterações no ciclo. Aqui está a metodologia concreta utilizada.

Resta dizer que estas metodologias vão mudando ao longo do tempo, consoante vários debates e interesses. Só o Eurostat (e eventualmente a AMECO) possui as "rotinas" para correr estes modelos completos. E que todas elas dependem de várias previsões que, em si, não são estáveis.

Quatro: depois de calculado, as regras são sempre aplicadas?

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Depois deste esforço técnico é preciso saber se as regras do saldo estrutural se aplicam de forma igual para todos os países, e a resposta é não. Vejamos três casos diferentes.

França
A Comissão abriu um Procedimento por Défices Excessivos em 2009 e recomendou que França corrigisse o défice nominal até 2012. Entretanto essa meta foi adiada para 2013, para 2015 e depois para 2017.

Quanto ao défice estrutural [4], ver um resumo no quadro acima.
 

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Espanha
Espanha tem défices nominais superiores aos de Portugal. Deveria ter conseguido um défice de 6,5% em 2013, 5,8% em 2014, 4,2% em 2015, e 2,8 em 2015. Essa é a proposta do draft, mas a Comissão Europeia desconfia e diz que, em 2016, o défice ainda estará em 3,5%.

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As previsões macroeconómicas são consideradas optimistas pela CE.

Quanto ao défice estrutural, ver um resumo no quadro acima.

Itália
Para 2016 a Itália está a propor um défice nominal de 2,2%, muito acima, segundo as palavras da Comissão Europeia, do objectivo de 1,8%.

Quanto ao défice estrutural, ver um resumo no quadro acima.

Áustria
A Áustria tinha previsto uma variação do défice estrutural de 0% em 2016. A Comissão Europeia requeria uma melhoria de 0,1pp. mas o esperado é que o défice aumente 0,4pp. Ainda assim, como nos casos anteriores, a Comissão Europeia aprovou o draft, declarando-o em risco de não conformidade.

Note-se que, em qualquer dos casos, os desvios nos ajustamentos estruturais são superiores ou equivalentes aos que estavam em cima da mesa em Portugal, que acabou por acordar com Bruxelas uma redução do défice em 0,3 pp. Por simples curiosidade, vale a pena comparar as previsões das diferentes instituições internacionais para a evolução do défice estrutural em Portugal:

Quando nem a Comissão Europeia, a OCDE e o FMI conseguem acordar na metodologia para determinar o défice, por que razão deveria o país sujeitar-se à arbitrariedade de Bruxelas?

Independentemente do ângulo, a resposta é sempre a mesma. Tanto na forma do seu cálculo, como na avaliação técnica que depois é feita do seu cumprimento, o défice estrutural é uma medida discricionária que serve um propósito claro: controlar politicamente os orçamentos nacionais, mesmo que cumpram genericamente as regras europeias, consoante a cor, direcção e poder do governo em causa.

Deputada do Bloco de Esquerda

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