Se Cristo fosse vivo
1. Conheci Peter e Betty em 2010. Ele tinha 87 anos, ela 76.
Viviam num bairro pobre da cidade mais violenta do mundo. Não eram marido e mulher, nem parentes, mas algo que eu nunca tinha visto num par: camaradas de casa, de luta e de Deus. Peter crescera na Chicago de Al Capone, fora piloto na II Guerra, sobrevoara Nagasáqui depois da bomba, tornara-se padre carmelita. Um dia partiu para a América Latina onde encontrou Betty, que crescera no Iowa entre 13 irmãos, era freira e enfermeira da Ordem da Misericórdia, trabalhava com os índios nas montanhas do Peru. Juntos percorreram o continente, entre combates e ditaduras, até que nos anos 1990 foram viver para Ciudad Juárez, fronteira do México com a cidade texana de El Paso. Essa semana em que os conheci foi igual à anterior e à seguinte em Juárez, corpos furados de balas ou sem cabeça, mulheres violadas, tiroteio, raptos, tortura, extorsão. Peter e Betty não viviam em Juárez apesar disto, mas por isto. A vida deles era, a cada dia, abraçar os vivos e honrar os mortos. Betty fizera um santuário no quintal, milhares de nomes escritos à mão. Todos os dias lhes falavam de gente a ser morta com a polícia ao fundo da rua, e a polícia nada. Homens com a vida a prémio, mulheres ameaçadas vinham pedir ajuda a Peter e Betty, eles iam. Sim, tinham medo, o medo vinha, depois saía, Deus sabia quanto tinham de morrer. Às vezes ficavam só com alguém nos braços, uma mulher que nem conseguia falar. De onde vinha toda esta violência? A resposta oficial era: do narcotráfico. E de onde vinha o narcotráfico? De todos a quem ele convinha. Se a droga matava, era por ser proibida, e se era proibida era porque isso interessava a muitos. Bastava perguntar a quem vivia em Juárez, como Peter e Betty, eles diriam que as drogas tinham de ser legalizadas, que o narcotráfico entraria em colapso sem a desigualdade, a exploração de que a fronteira era símbolo. Porque, na verdade, a violência vinha da fronteira. Juárez era o lugar de que os gringos tinham feito o seu bordel, e agora era uma espécie de escrava do mundo, com centenas de milhares de trabalhadores a seis euros por dia nas centenas de fábricas estrangeiras que ali montavam os telemóveis ou televisores de todos nós. Conheci uma dessas trabalhadoras, num bairro ainda mais pobre, ex-alcoólica, violada desde criança, chamava-se Eva. Um dia pediu a Deus que lhe enviasse alguém e Deus enviou-lhe uma mulher. Então, a família que abusara dela, ou calara o abuso, deixou de lhe falar por ela ser lésbica. Ela própria, Eva, achava que tinha de pagar esse pecado a Deus. Toda a gente parecia temer Deus em Juárez, e quem vinha de fora e não o temia perguntava-se onde andaria esse Deus. Nunca topei com ele, mas com o bem, muitas vezes. A última vez que vi Peter Hinde ele estava a partir para um funeral nos EUA com a mochila dentro de um saco do lixo, para ninguém perceber que partia de viagem e Betty ficava sozinha. A última vez que vi Betty Campbell ela agarrou numa maçã, a única que havia, e quis que eu ficasse com ela porque achava que não me tinha dado nada.
2. No extremo oposto do México, lá no Sul, conheci outro padre, Alejandro Solalinde. Fundara um albergue para os milhares de ilegais que vinham de El Salvador, Honduras, Guatemala, Nicarágua. O objectivo deles era atravessar o México, desde o Sul indígena da selva e das montanhas que é Chiapas, até ao Norte do deserto, da fronteira com os EUA. Onde tinham nascido era tão sem esperança que enfrentavam a morte para entrar no México, onde muitos morreriam às mãos do narcotráfico, se não morressem depois em Juárez. Então, na primeira etapa mexicana agarravam-se a um comboio qualquer que saísse de Chiapas, escondidos num buraco entre os vagões. E “se Cristo fosse vivo”, dizia o padre Alejandro, era ali que estaria, com os imigrantes.
3. Na próxima sexta-feira, o Papa Francisco aterra no México. Vai a Chiapas e a Juárez, essas duas histórias da violência nos últimos 500 anos: encontro de Velho e Novo Mundo, extermínio indígena, exploração colonial, grandes migrações, perda da política para o capitalismo selvagem, o narcotráfico como parte do negócio. Francisco tem falado de tudo isso desde que se tornou Papa, e é difícil sobreestimar o alcance político desta visita, pensando no estado do mundo. Na Europa, os governos ignoram milhões de refugiados e mostram-se cada vez mais hostis à imigração. Na corrida para a Casa Branca, Trump declara que os mexicanos são criminosos e violadores, planeia ter pelotões que vão porta-a-porta à caça dos 11 milhões de sem-papéis para os deportar, e mantém-se forte nas sondagens. Já o seu rival Ted Cruz, que acaba de ganhar o primeiro round em Iowa seduzindo os evangélicos, quer triplicar a segurança na fronteira, fazer um muro ao longo dos mais de três mil quilómetros, e deportar os ilegais, mas sem porta-a-porta. Não são os únicos a achar que Obama é um banana, ainda que o presidente tenha endurecido o controle de documentos. E enquanto tudo isso acontece no Norte do planeta, o papa Francisco vai estar com os indígenas em Chiapas; depois com centenas de presos em Juárez, na que foi uma das penitenciárias mais violentas do mundo; e logo a seguir fará uma missa campal junto à fronteira para 220 mil pessoas, sobretudo migrantes, vítimas de violência, familiares de desaparecidos, indígenas, operários. As paróquias receberam indicações para dar prioridade a estas pessoas. Hoje é o ensaio geral.
4. A ida do papa a Juárez seria impensável em 2010, o pico da violência, quando 3000 pessoas foram assassinadas na cidade. Em 2015, esse número foi quase sete vezes menor (434 homicídios). As mortes estabilizaram o bastante para já não ser impensável Francisco lá ir. Mas Juárez continua a ser uma cidade violenta, a fronteira do México com os EUA é uma das mais mortais e as fábricas prosperam, com salários a seis euros, bloqueando greves e sindicatos. 2016 começou com despedimentos de quem queria melhores condições, por exemplo a fabricante de impressoras Lexmark acusou os trabalhadores de “perturbar o local de trabalho”. E quem vai falar na cara destas fábricas, para ser escutado dos EUA à Dinamarca, é o homem que no ano passado, mal chegou à Casa Branca, disse: “Como filho de uma família de imigrantes, sinto-me feliz de ser recebido neste país, que foi em grande parte construído por essas famílias.”
5. Enquanto escrevia, enviei um mail a Peter e Betty, que nunca mais vi. Peter, que estará com 93 anos, respondeu pouco depois. Sim, está tudo bem, “há um grande entusiasmo dos dois lados da fronteira” com os preparativos. “El Paso é 80 % hispânico, e com estas más notícias de Washington sobre os indocumentados, e os candidatos republicanos falando de reforçar a segurança na fronteira e deportar gente, a visita do Papa surge como a visita de um salvador. Pela presença na fronteira, ele vai defender o direito à imigração e a empregos decentes, a necessidade de uma nova economia perante as mudanças climáticas, a opção pela inclusão contra a exclusão. Tudo isto foi central nas últimas encíclicas. O compromisso dele é sacudir as coisas, abrir novos horizontes.” Em El Paso, mais de 50 mil pessoas seguirão a missa num estádio, por écrãs. E no terreiro em Juárez haverá quatro controles para entrar, as filas vão levar séculos, prevê Peter. Mas não tanto quanto ele esperou para ver isto.