No Haiti houve carnaval mas não houve eleições, e agora não há Presidente
Mandato de Michel Martelly terminou este domingo, mas a crise política continua. Parlamento vai indicar um governo de transição e nomear um Presidente interino, até haver condições para completar o processo eleitoral.
O mandato do Presidente do Haiti, Michel Martelly, chegou ao fim este domingo, sem que o país tivesse votado para eleger o seu sucessor no cargo. A situação de instabilidade política e caos institucional, que se arrasta há mais de um ano, atingiu os píncaros – e parece não ter fim à vista, para o desespero da comunidade internacional que sustenta o funcionamento do país depois do violento terramoto que destruiu metade do Haiti e matou mais de 300 mil pessoas, em 2010.
O cenário de vazio de poder, que parecia inevitável, foi evitado in extremis, poucas horas antes de soarem as badaladas da meia-noite. Um compromisso precário foi subscrito pelos principais agentes políticos do país, que aceitaram que o primeiro-ministro demissionário, Evans Paul, se mantenha no cargo, à frente de um governo de transição, até que os líderes das duas câmaras que compõem a Assembleia Nacional consigam chegar a consenso para a nomeação de um Presidente interino, cuja autoridade terá uma validade máxima de 120 dias.
Durante esse período, o Presidente interino e o governo provisório terão obrigatoriamente que resolver os engulhos que levaram ao adiamento, no passado dia 24 de Janeiro, da segunda volta das eleições presidenciais e legislativas, da qual resultaria um novo chefe de Estado, um novo Parlamento e um novo Governo. A expectativa é que a eleição seja convocada para 24 de Abril – e que um novo Presidente tome posse a 14 de Maio.
A votação de Janeiro foi cancelada na véspera por decisão da autoridade eleitoral do país, que concluiu não existirem condições, nem de segurança, nem de transparência, para a realização do escrutínio: perante violentos protestos de rua, alegações de irregularidades graves na primeira volta, e debaixo de ameaça de boicote da oposição, liderada por Jude Célestin. Este ex-responsável pela agência estatal de construção foi afastado da corrida presidencial em 2011, deixando o caminho livre à eleição de Martelly, um popular cantor e artista que os haitianos conheciam como “Sweet Micky”.
Sem eleições, o Haiti ficou sem Presidente, sem Governo e sem uma parte da Assembleia Nacional. A situação é insólita mas não totalmente inédita: Martelly governou por decreto durante o último ano que permaneceu no cargo, porque os mandatos dos deputados expiraram sem que tivessem ocorrido eleições. Apesar de não ser descrito como um ditador, depois de chegar à presidência, Martelly foi ignorando os regulamentos e ultrapassando os prazos para a realização de eleições legislativas e municipais, num braço-de-ferro com a oposição que conduziu ao actual impasse.
Agora, ou aceitava manter-se no poder, à revelia da Constituição, ou gastava a última réstia de autoridade na negociação de uma solução de recurso que impedisse a crise institucional. “Não foi fácil, mas como tinha prometido aos haitianos, não abandonaria a presidência deixando o país na incerteza”, declarou Michel Martelly. “A situação no Haiti é excepcional e requer uma solução excepcional”, admitiu Ronald Sanders, o chefe da missão especial enviada pela Organização de Estados Americanos (OEA) para o Haiti.
Embora o desastre iminente tenha sido evitado, a incerteza e convulsão política no Haiti prosseguem, e nada garante que o acordo se aguente nos próximos quatro meses. A aliança da oposição, agrupada num chamado “Grupo dos Oito”, não escondeu o seu desagrado, e deixou claro que encarava a solução como uma “imposição”. Além de não reconhecer legitimidade a Martelly, ou à delegação de peritos internacionais (diplomatas norte-americanos e responsáveis da OEA) que agiram como mediadores, a oposição não concorda com a fórmula encontrada para a composição de um conselho de ministros provisório – que dizem não garante o respeito pela representatividade de cada partido no parlamento.
“Sabemos que temos de estar atentos porque há muita gente insatisfeita com este acordo. Mas pedimos a todos os responsáveis políticos que dediquem todos os seus esforços à estabilidade do país. O meu apelo, a todos os protagonistas, é de que evitem recorrer à violência, e que compreendam que de cada vez que isso acontece o Haiti dá um passo atrás”, afirmou Ronald Sanders. “Mas consideramos que o país tem agora uma oportunidade para começar de novo”, acrescentou.
O dirigente da OEA referia-se à turbulência que envolveu o processo eleitoral, que já estava “perdido” antes de ter sido oficialmente suspenso, há três semanas. As diferentes rondas da votação foram desacreditadas, por organizações haitianas e observadores internacionais, com denúncias de fraudes e acusações de corrupção na máquina eleitoral. Uma comissão de inquérito comprovou irregularidades em mais de 90% dos boletins de voto, mas não conseguiu determinar quem foi beneficiado ou prejudicado com os ilícitos. A oposição acusou a comissão eleitoral de estar ao serviço de Jovenel Moïse, o relativamente desconhecido empresário e exportador de bananas que foi indicado pelo Presidente para lhe suceder no cargo, e que para muitos haitianos é menos um herdeiro político e mais um fantoche manipulado por Martelly.
“É uma farsa: estamos a falar de uma selecção e não de uma eleição”, criticou Célestin, que este domingo manteve o silêncio sobre a sua eventual participação (ou não) na segunda volta contra Jovenel Moïse.
“Os últimos desenvolvimentos são positivos, mas ainda existem tantas dúvidas e tanto espaço para incertezas, que a única garantia para já é de que esta história ainda não acabou”, comentou ao PÚBLICO o director do programa de estudos latino-americanos da Universidade George Washington, Robert Maguire. Para o especialista no Haiti, é positivo que o acordo alcançado tenha sido apresentado como uma proposta pensada pelos actores nacionais e não uma solução internacional. “E é positivo que Martelly não tenha sido o seu autor: ele é uma figura polarizadora, e melhor que se afaste para evitar desconfianças”, observou.
Porém, “dá ideia que a ideia é realizar a segunda volta tal como estava originalmente planeada, sem ter em conta que grande parte dos haitianos acredita que o processo estava inquinado desde a primeira volta”, lembrou. “Além disso, o calendário que foi estabelecido vai permitir que, de ambos os lados, voltem a aparecer truques sujos. Já houve um sinal disso esta manhã, com bandos armados a deambular nas ruas de Port-au-Prince”, acrescentou.
“A república das ONG”
O Haiti, que antes do terramoto de 2010, era a economia mais pobre do hemisfério ocidental, está dependente da assistência humanitária e das transferências da comunidade internacional, para o financiamento da reconstrução de infraestruturas e para a operação de serviços públicos, de escolas a hospitais e tribunais (não é por acaso que, desde então, é informalmente designado como “a república das ONG”). Só para garantir a realização das eleições, os Estados Unidos, um dos principais doadores, transferiram 33 milhões de dólares para o país, mas à semelhança do que tem acontecido com a execução de novas estradas, bairros habitacionais, sistemas de saneamento ou, a “reconstrução” da democracia tem-se revelado um desafio para os parceiros internacionais.
Não deixa de ser irónico que o país tivesse quase a mergulhar no abismo no dia em que assinalava o 30º aniversário da deposição de Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, que pôs fim ao violento regime iniciado pelo seu pai – parece que o país não se consegue livrar do fantasma dos homens providenciais e presidentes vitalícios.
O optimismo que se seguiu à “libertação” do Haiti depois de décadas de violência, corrupção e ditadura, com a realização das primeiras eleições democráticas em 1987, logo deu lugar ao desencanto. Em vez de uma transição pacífica, o processo ficou marcado por massacres; depois vieram golpes de Estado ou eleições suspeitas de fraude e manipulação, que aprofundaram a disfuncionalidade das instituições.
“O Haiti continua a caracterizar-se pela pobreza extrema, desigualdade profunda e falta de oportunidades”,aponta Robert Maguire, dizendo que nem os milhões que o país recebeu depois do terramoto de 2010 alteraram esse panorama. “Os haitianos continuam a viver em condições terríveis, sem acesso a cuidados médicos adequados, ao abastecimento de água ou saneamento, e sem quaisquer oportunidades de desenvolver os seus talentos através da educação, do empreendedorismo ou do emprego”.
Antes da intervenção da OEA, o Presidente Michel Martelly – que tinha prometido trabalhar para unir o país depois de décadas de divisões, mas agiu com a mesma prelação, hostilidade e autoritarismo dos seus antecessores – parecia ter atirado a toalha ao chão.
Na semana passada, o chefe de Estado, que era um dos mais populares cantores de compas, a adaptação haitiana do estilo merengue, veio a público anunciar, não uma solução para a crise, mas o lançamento de uma nova canção para a celebração do Carnaval, com o sugestivo título “Dá-lhes a banana”. Houve quem interpretasse a mensagem do refrão como uma tentativa de condicionar o processo negocial para a escolha do seu sucessor – afinal, Moïse é um negociante de bananas. Mas também houve quem notasse que a letra da música era um ostensivo ataque contra uma conhecida jornalista e activista dos direitos humanos, cheio de referências sexuais.
A metamorfose de Martelly em Sweet Micky, completava-se este fim-de-semana: o Presidente prometeu abandonar o cargo em cima de um carro alegórico, a celebrar o Carnaval. E é possível que deixe saudades: segundo Robert Maguire, o legado do Presidente define-se pelo “enfraquecimento severo do processo e da prática democrática”, que contribui para que o país seja encarado pelos seus vizinhos e doadores “ou como uma vergonha ou como uma piada”, mas também pela introdução da palavra “kit” no crioulo haitiano, e a realização de oito festivais nacionais de Carnaval em cinco anos de mandato.