Brincar com o fogo

Aconteça o que acontecer será sempre ao PS que irão ter os bons ou maus resultados do que se está a passar.

As características atípicas das eleições presidenciais, em que não houve ganho de causa para a direita radical dos saudosos do PAF, tem ajudado a esconder uma crise bastante profunda da esquerda portuguesa, que aliás também se manifestou nessas eleições. Se a isso somarmos a existência de um governo de centro-esquerda, apoiado pela esquerda, numa situação sem paralelo desde o 25 de Abril, também parece que a esquerda soma e segue, enquanto, na verdade, se encontra perigosamente estagnada. Será apenas uma questão de tempo até que esta crise da esquerda possa vir a favorecer o retorno ao poder de uma direita que será então mais agressiva e revanchista do que já é hoje. E hoje já é muito.

Há dois aspectos positivos na vida política dos últimos meses, que deveriam servir de élan para as forças que querem outra política e outra composição do espectro político. Essas forças vãs do centro e centro-esquerda à esquerda, e estes aspectos tem sido desbaratados e pouco usados: um, é o derrube do governo PAF; e outro a política a que pejorativamente se chama de “reversões e reposições”, que representa o melhor que este governo tem feito.

São em ambos os casos, medidas políticas muito fortes, a primeira traumática e genética, a segunda estrutural, mas tem tido um papel menor na argumentação política, como se fossem triviais ou meramente defensivas. Quer uma quer outra seriam boas oportunidades para dar um impulso e uma assertividade à actual maioria parlamentar que suporta o governo e, quer uma quer outra, ameaçam perder-se por uma mistura de passividade, moleza, descrença, má-fé, egoísmo de grupo e partido. A direita, pelo contrário, mesmo estando ainda muito assarapantada, não perdeu a sua agressividade. Conduziu uma campanha em primeiro lugar assente na ilegitimidade da solução governativa e, depois de esgotado este tema, conduziu outra campanha destinada a desqualificar a acção governativa nas “reversões” com argumentos tecnocráticos, aproveitando-se da interiorização que muitos jornalistas e comentadores fizeram do argumentário da direita nos últimos quatro anos. As medidas do Governo foram e são interpretadas em função do cânone da direita, e a esquerda recita-as, em particular o BE e o PS, como se fossem “positivas”, mas sem as inserir num debate político que precisava de ser muito mais dinâmico. Mais do que “promessas” ou meras reivindicações dos acordos PS-BE-PCP, as “reversões” são o sinal de que a governação passou, ou deveria passar, a servir o “bem comum” a maioria dos portugueses. Deveriam ser uma honra ao serviço da dignidade das pessoas e não uma mera correcção de rumo.

Esta campanha da direita foi continuada na questão do orçamento, em que o PS se rendeu com o argumento que as suas dificuldades europeias se deviam a “questões técnicas”, e o PCP e o BE se limitaram a fazer exigências públicas de “cumprimento dos acordos”, como se não fossem parte de um processo que exigia muito mais de entendimento e de solidariedade com um governo que também é “deles”. Só numa fase mais tardia, já o orçamento estava “tecnicamente” desqualificado junto da opinião pública, pela combinação de ataques e pressões da direita, algumas duplicadas por pressões dirigidas à Comissão Europeia via PPE para chumbar o orçamento português, com fugas “oportunas” de funcionários europeus a partir de Bruxelas, é que começou a haver alguma reacção.

Essa reacção veio através de declarações de alguns dirigentes do PS, do PCP e do BE, denunciando o que PSD e PP estavam a fazer, através de Passos, Portas e Rangel, e como a Comissão Europeia, que, enquanto cedia a Londres aspectos fundamentais do quadro social europeu, mostrava uma inflexibilidade agressiva com o orçamento português por razões ideológicas e de antipatia política. Não sei se o orçamento está ou não mal feito, – no que, aliás, se estiver mal feito será mais uma continuidade do que uma diferença com os anteriores, – só sei que ele estava a ser atacado não por “tecnicalidades”, mas por questões políticas que são hoje, no contexto europeu, “subversivas”. Ora isto devia merecer do PS, do BE e do PCP, pesem as suas diferenças, uma fala mais alta e dura.

Se o PS, BE e PCP acham que está tudo bem, enganam-se redondamente. Se não têm noção de risco e urgência, não percebem o que se passa, nem sequer o que estão a fazer. Quando há muito escrevi que o caminho em que se tinha entrado com o derrube do governo PAF implicava uma alta consciência dos riscos e perigos, tinha a percepção de que não se estava “a jogar a feijões”, mas a fazer uma parada muito alta. Esperava e espero que quem “joga” essa parada, não se distraia com aspectos menores e se mantenha firme e sem tibiezas no essencial. Deste “jogo” não há saída limpa, resta saber quem é que sai sujo.

Ora, o BE está demasiado contente consigo próprio para perceber que tem que moderar esse contentamento a favor de um comportamento colectivo com o PS e o PCP, que evite a fácil reivindicação de ganhos, que deixarão de ser ganhos se se perder o instrumento que os permitiu. E esse instrumento, por muito que isso custe a admitir ao BE, não foi a “força negocial” do Bloco (que é um fantasma propagandístico da direita), mas a disponibilidade do PS e, numa parte também decisiva, do PCP para se entenderem contra a direita. Sem um governo como o do PS, ou à volta do PS, mesmo que frágil, ou até porque é frágil, a alternativa são novas eleições num contexto particularmente desfavorável para a esquerda. O BE até pode subir um ou dois pontos, mas se a direita tiver uma maioria absoluta, bem pode ir para casa aquecer-se com esses dois pontos na lareira, enquanto cá fora desaba o mundo dos seus “ganhos”.

A crise do PCP também não é boa conselheira. Contrariamente à alegria do BE, PCP está demasiado triste consigo próprio para perceber como tem muito a perder se ajudar a enfraquecer o PS, num afã de competir com a retórica do BE. Enquanto o BE pode ter ganhos propagandísticos o PCP teve ganhos “orgânicos” com a actual solução governativa, principalmente ao travar a ofensiva anti-sindical que era evidente na fase final do governo PAF. Pires de Lima e Portas, mas também Passos, Maria Luís e o porta-voz do governo estavam a usar sistematicamente como legitimação para a política de privatizações, as greves e reivindicações, e os apelos à limitação do direito à greve e a acção sindical eram comuns na maioria. A mesma maioria que hoje se lamenta da “desvalorização” da concertação social e que actuou nos últimos quatro anos com uma política social de facto consumado.

Se esse ganho “orgânico” do PCP não o tem ajudado eleitoralmente, o PCP deverá procurar noutro lado, na sua política, na sua linguagem, nos seus quadros, as razões porque isso aconteceu. Mas devia perceber com uma clareza cristalina que a queda do governo do PS, ou a contínua criação de dificuldades para mostrar “identidade”, não são bons para todos os partidos da actual maioria, a começar pelo PCP.

O PS é ao mesmo tempo o elo forte e fraco disto tudo. Aconteça o que acontecer será sempre ao PS que irão ter os bons ou maus resultados do que se está a passar. O PS dá a esta solução política duas coisas fundamentais que só dele poderiam vir: é o segundo partido mais votado, com mais votos do que o BE e o PCP juntos, o que significa que sem ele não há qualquer solução de governo; e a disponibilidade, – e isso é obra de António Costa, – para acabar com o direito natural a governar do chamado “arco da governação”. Isso, por si só, foi uma verdadeira revolução do sistema político, mas só ganhará consistência se o PS puder governar com tempo, competência e sentido social e se, nas próximas eleições, a esquerda estiver entendida formal ou informalmente. Ou seja, o caminho que se abriu em Outubro de 2015, ou dura muito pouco e a hegemonia da direita será longa, ou é mais duradouro e isso pode permitir um reequilíbrio a prazo do sistema político e, então, “soltar” o centro”.

A questão da Europa vai ser a mais decisiva e a mais difícil de resolver, mas isso fica para outra altura.

 

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