Que se lixe a herança literária de um país inteiro, que se lixem os gigantes que partilham connosco o ar que respiramos. Mandai também à merda todas as inquietações de que deve tratar a literatura ou as ideias originais de tantos e tantos escritores que se dedicam ao ofício sem que tenham a sorte de ser publicados. Porque, na verdade, para o portuguesinho iletrado e pouco amigo dos pensamentos alheios, uma livraria é um antro infernal que deve ser evitado a todo o custo. Na cabeça desses milhares de almas, os nomes de Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, Valério Romão, Ricardo Adolfo e outros que tais devem ser os prisioneiros mais famosos da Carregueira ou os melhores calceteiros da margem Sul do Tejo. O que importa é o "bestseller" que se encontra facilmente numa prateleira do Pingo Doce e está achado o livro que será lido, linha a linha, a muito custo, ao longo da próxima década.
Não é de espantar, portanto, que o mesmo povo que põe nos "tops" um dactilógrafo chamado Chagas Freitas (sim, esse que diz que vive na "lamecholândia") também atribua o título de "Melhor Escritor Português" a José Rodrigues dos Santos (JRS). A sério: parece que 28 mil pessoas votaram num prémio qualquer e a maioria decidiu entregar o galardão a JRS. Certo.
E agora há-de levantar-se a facção do "ah, porque o bom e mau é muito relativo". Lamento desapontar-vos, mas essa é a teoria dos ignorantes. De quem pouco entende de ideias, de escritas, de quem sabe bola sobre literatura (ou cultura no geral, provavelmente). De quem não compreende a diferença entre um (blhéque!) Chagas Freitas e um M. Tavares (perdoa-me a comparação, Gonçalo, não torna a repetir-se). Caríssimos: o que vende mais não é necessariamente melhor. O que mais se compra é entretenimento de cordel, não é literatura. Porque a literatura faz-se de outras coisas: originalidade das histórias, torção dos pensamentos, detalhe das descrições, o modo escorreito e inventivo como nascem metáforas, a ruptura com o que já existe. E não julguem que não tenho conhecimento de causa: leio todos os livros de JRS, mas mais para aprender como NÃO se faz quando se quer escrever ficção.
É normal (e saudável) que a elite literária nem sequer se digne a comentar este tipo de "prémios", dá-se-lhe a importância que tem. Da meia dúzia de escritores que conheço pessoalmente, todos se riem para o lado, resignando-se perante uma maioria inculta que não lhes dá a atenção e o respeito merecidos, que prefere olhar para números de vendas. No entanto, não deixa de ser uma infelicidade cultural que milhões de pessoas fiquem a pensar, por causa de um prémio saído de uma fresta esconsa, que JRS é, de facto, o melhor escritor que este país pariu nos últimos tempos. A História já o demonstrou e demonstra-lo-á de novo: os líderes de vendas serão esquecidos num ápice. Os clássicos, esses, passarão a ser os artistas periféricos, os escondidos nos seus próprios silêncios. Os "Herbertos" e os "Pessoas".
É triste que se fale de livros com um encanto romântico mas que, depois, não se saiba destrinçar o que é imaginativo do que é superficial, o que é parolo do que é relevante. Já se sabia, mas hoje houve mais uma confirmação: num país em que é milagre encontrar uma pessoa que saiba usar vírgulas, piscar o olho no fim de telejornais ajuda a vender livros fraquinhos, fraquinhos.