Morreu um cineasta misterioso: Jacques Rivette
Foi um dos nomes emblemáticos da Nouvelle Vague. A inteligência, a gentileza e o sorriso "malandro" são evocados por Inês de Medeiros, que aos 20 anos experimentou esse mistério chamado Rivette.
Jacques Rivette, um dos realizadores emblemáticos da Nouvelle Vague - e autor dos seus filmes mais misteriosos, talvez mesmo dos mais iniciáticos - morreu esta sexta-feira aos 87 anos. Terá sido a sua biógrafa, Hélène Frappat, a comunicar à imprensa a morte do realizador de Paris nous appartient, L’Amour fou ou A Bela Impertinente. Homenagens ao mais alto nível: o chefe de Estado francês, François Hollande, fala de um cineasta de obra "fora das normas"; a ministra da Cultura Fleur Pellerin foi feliz na síntese - "um dos maiores cineastas do íntimo e da impaciência amorosa"; Anna Karina, a sua actriz de Suzanne Simonin, la Religieuse de Diderot, sublinhou que era dos mais inventivos e livres da Nouvelle Vague.
Avec Jacques Rivette disparaît l'un des plus grands cinéastes de l'intime et de l'impatience amoureuse. C'est un jour de profonde tristesse.
— Fleur Pellerin (@fleurpellerin) January 29, 2016
Chegou ao cinema pela crítica. Conheceu Jean-Luc Godard, François Truffaut e Eric Rohmer na Cinemateca Francesa, no final dos anos 1940 (em 1950 fundaram a Gazette du Cinéma, que chegou ao número 50), em 1953 começou a escrever para os Cahiers du Cinéma, onde foi editor de 1963 a 1965 e onde defendeu Eric von Stroheim, Roberto Rossellini, F. W. Murnau e Fritz Lang como cineastas da mise-en-scène.
Foi como crítico, nos Cahiers, que começou por deixar a sua marca, assinando alguns textos históricos. Foi dele o primeiro a apelidar Howard Hawks de “génio”, sublinhando que a marca desse génio era “a evidência”. O grupo dos Cahiers já tinha imposto, para espanto de muitos contemporâneos, o nome de Hitchcock. Depois desse texto passaram a ser conhecidos como os “hitchcocko-hawksianos”. Mas há mais: foi de Rivette o célebre texto (Da Abjecção) sobre “o travelling de Kapo”, introduzindo, a propósito de um filme de Gillo Pontecorvo sobre os campos de concentração, uma reflexão sobre a ética da representação jogada contra o esteticismo. Ou ainda a sua Carta Sobre Rossellini, a propósito da Viagem a Itália, profetizando que aquele filme abria uma “brecha” pela qual “todo o cinema moderno devia obrigatoriamente passar”. A ele se deve, ainda, a defesa de alguns dos filmes do final do período americano de Fritz Lang (cineasta das conspirações, e uma das maiores influências sobre o Rivette cineasta), como num extraordinário artigo sobre Beyond a Reasonable Doubt.
Em 1956 realizou a sua primeira curta-metragem, Le Coup de Berger (argumento de Claude Chabrol). Dois anos depois iniciou a rodagem da primeira longa, Paris nous Appartient (1961), onde se estabeleciam os dados da "experiência Rivette": o complot como mundo de possibilidades ficcionais, sempre à beira do fantástico e do delírio lúdico e nocturno, o teatro e o ensaio como metáfora da aventura humana.
Levaria essas pesquisas, e ainda a mistura do documentário e da ficção, até um limite, anos depois, no longuíssimo L'Amour Fou (1967-1968), com mais de quatro horas, e Out One, filme em duas versões, uma (Noli Me Tangere) de 12 horas que adquiriu estatuto mítico, e outra, lançada comercialmente, de cerca de quatro horas. Os anos 70 foram de facto o período mais “estranho” da obra de Rivette … Ma antes dele, houve o "caso" A Religiosa, 1966...
A Religiosa, adaptação de Diderot, foi interditado pela censura francesa - muitos vêem no ascetismo desse filme um anúncio do Manoel de OIiveira de Amor de Perdição (1978). Foi um escândalo na França do General De Gaulle e um sucesso à medida. As pressões do mundo católico contra "um filme blasfemo que desonra as religiosas" fizeram-se sentir durante a rodagem. Não obstante, o produtor Georges de Beauregard continuou com as filmagens mesmo estando certo de que a exibição seria proibida. De facto, De Gaulle ordenaria ao seu ministro da informação, Alain Peyrefitte, “Vous vous débrouillez mais ce film ne sors pas. C’est un ordre!”. Estava-se em tempo de eleições presidenciais, é preciso contextualizar.
Houve um manifesto assinado por duas mil personalidades ("Libérez la Religieuse") denunciando aquilo que consideravam uma deriva monárquica do regime. Sindicatos, actores e realizadores protestaram e escreveram sobre a forma paternalista como o establishment tratava o cinema francês. O assunto subiu ao Parlamento, os protestos não acalmaram, o próprio De Gaulle cansou-se: “Não quero ouvir mais falar desta Religiosa, façam o que quiserem.” Estreia autorizada, com classificação de interdição a menores de 18 anos. Que só foi levantada 21 anos depois, em 1988.
Céline et Julie Vont en Bateau, em 1974, voltou a ser um razoável sucesso, mas logo a seguir vieram os seus maiores fracassos, Duelle e Noroît, filmes pouco vistos, em que distribuidor algum quis pegar, e cujo insucesso impediu Rivette de completar os outros dois filmes (tratava-se de uma tetralogia) que os complementariam. Chamou-lhes os seus “filmes fantasmas”, e muitos anos depois traria um deles à vida em Histoire de Marie et Julien (2003). Mas na altura, foi o “eclipse”: ficou anos sem filmar e só voltou à actividade no princípio dos anos 80, com Merry Go Round (título “stroheimiano”…), que faz de charneira entre o Rivette mais excêntrico da década de 70 e o Rivette dos últimos anos, ao fim e cabo tão depuradamente clássico, ou tão próximo de uma revisão do classicismo (inclusive do classicismo literário) à luz de um olhar moderno.
Em Céline et Julie vont en Bateau (1974) tinha dado os passos para explicitar o onirismo e o fantástico como territórios do seu cinema: é um filme jubilatório, a brincar com os actores, com o jogo de duplos e cumplicidades. Tal como, quase uma década depois, O Bando das Quatro (1984), outro título nada furtivo a exibir o jogo. Nele fez jogar a actriz portuguesa Inês de Medeiros. Era um filme sobre o teatro e sobre a aventura de se tomar posse de um texto.
A graça de Jacques
Inês tinha nessa altura 20 anos. Iria fazer a personagem de uma aluna de teatro, "meia estranha e mística”, como conta ao PÚBLICO. A "graça" de Rivette era que não tinha argumento como ponto de partida. “Tinha uma ideia e depois achava que toda a gente devia trabalhar ao mesmo tempo. Tinha com ele os argumentistas – Christine Laurent e Pascal Bonitzer que estavam no set, à parte – e todos os dias íamos inventando as cenas e os diálogos que era suposto fazermos no dia seguinte”. O estranho, mas se calhar nada estranho, é que quando viram o filme nenhuma das actrizes reconheceu a sua personagem. “O Rivette, no fundo, sabia bem o filme que queria fazer à medida que íamos inventando e todas ficámos surpreendidas com a personagem final. ‘Mas não foi isto que eu fiz!’ Ele ria-se e dizia: ‘A minha função é roubar o que vocês não sabem que estão a fazer. [Risos] Tudo isto com uma gentileza e um sorriso malandro.”
“Ele procurava estas zonas entre mistério, as relações não ditas, os olhares suspeitos entre personagens", continua Medeiros. "Criava ambientes e depois filmava o que queria. A inteligência estava na forma como nos dava muita segurança – estávamos absolutamente seguras do que estávamos a fazer. Por estarmos tão seguras não desconfiávamos de que ele estava a filmar não o que estávamos a fazer mas aquilo que não sabíamos que estávamos a fazer. Dava-nos todas as armas para nos sentirmos donas do que estávamos a construir. Mas ele estava a olhar para aquilo que não estávamos a dominar.”
As mulheres, as actrizes, foram sempre o enigma dos seus filmes - veja-se Bulle Ogier. Duas estrelas do cinema francês dos anos 90 não resistiriam a experimentar as rodagens de Rivette: Emanuelle Béart, na Bela Impertinente (livre adaptação da novela de Balzac Le Chef d'Oeuvre Inconnu), que foi mais do que um sucesso de estima em 1991 - dos últimos exemplos do cinema de autor (e um autor com notoriedade de "difícil") a criar acontecimento nas salas, por isso é mesmo de outro mundo que falamos - e Sandrine Bonnaire no díptico sobre Joana D'Arc, Jeanne la Pucelle (1994).
Na Bela Impertinente, a actriz Jane Birkin encontrou Rivette. Interpretava uma personagem de silencioso masoquismo, a mulher de um pintor (Michel Piccoli) que encontrava novo modelo para o seu trabalho (Emmanuelle Béart). Anos depois, em 2010, em 36 vistas do Monte Saint-Loup, Jane voltava a deixar que Rivette explorasse o seu masoquismo, a forma como ela se podia abandonar a quem a conduzisse. Esse era um filme sobre os medos, os do espectáculo (tudo se passava numa tenda de circo) como reflexo dos da vida. O tempo das sequências de circo começava a ditar o tempo das cenas da chamada "vida". Birkin contava ao PÚBLICO que o Rivette que encontrou nesse filme era um cineasta diferente daquele dos anos 90 (não "durante as cenas, mas entre as cenas, mais perdido... e nunca come"). Mantinha, contudo, um "lado de clown, apesar da sua reputação intelectual".
“Era uma figura misteriosa", acrescenta Inês de Medeiros. "Sempre teve um lado que cultivou muito do seu mistério. Nunca sabíamos bem o que era a vida dele, o que é que lhe tinha acontecido, havia sempre uma nuvem de fumo e de mistério. Mas não era um mistério assustador.” com Luís Miguel Oliveira
Notícia corrigida às 20h26