Sobre a adopção gay
É uma pena que as crianças portuguesas não tenham associações e deputados a lutar pelos seus direitos.
Eu tenho um sonho: que um dia, ao tratarmos de assuntos tão importantes e complexos quanto o aborto ou a adopção de crianças por casais homossexuais, consigamos elevar o debate público dois ou três patamares acima do nível cavernícola. O “nível cavernícola” é simples de detectar: por regra, qualquer posição que considere estas matérias como óbvias e naturalmente evidentes – seja para as acolher de braços abertos, seja para as rejeitar de olhos fechados – tem boas possibilidades de padecer de cavernicolismo. As reacções ao veto de Cavaco do diploma da adopção gay vieram demonstrá-lo mais uma vez.
Seja qual for a nossa posição em relação à adopção de crianças por casais homossexuais, é muito difícil negar razão a Cavaco em dois pontos. Primeiro, quando ele afirma que, “independentemente de um juízo de fundo sobre as soluções legislativas”, seria importante “assegurar que uma alteração tão relevante numa matéria de grande sensibilidade social não entre em vigor sem ser precedida de um amplo e esclarecedor debate público”. Cavaco tem inteira razão: esse debate, de facto, não existiu, o que é tanto mais incompreensível quanto a questão da co-adopção, muito mais restrita e consensual, deu origem a inúmeras polémicas e trocas de argumentos.
Mais grave ainda, porque profundamente desonesto, é o segundo ponto para que Cavaco chama a atenção: a adopção gay não tem a ver com o superior interesse da criança. O diploma combate uma discriminação existente entre casais homossexuais e heterossexuais e esse combate é, sem dúvida, legítimo. Mas é de uma total desonestidade intelectual confundir isso com o direito de os miúdos a serem adoptados. A co-adopção por casais homossexuais é uma luta pelo interesse superior da criança, na medida em que já existem laços afectivos estabelecidos. A adopção por casais homossexuais é uma luta pelos direitos da comunidade LGBT. Não quer dizer que essa luta não seja justa, mas é uma vergonhosa instrumentalização da criança invocar o seu “superior interesse” a propósito desta alteração à lei, como ouvi em Novembro e como voltei a ouvir agora, após o veto presidencial. Se não há falta mas excesso de candidatos à adopção (a não ser para miúdos com graves problemas de saúde), o que é que os direitos das crianças têm a ver com isto?
É uma pena que as crianças portuguesas não tenham associações e deputados a lutar pelos seus direitos com o mesmo empenho que o PS e o Bloco colocaram na luta pelos direitos da comunidade LGBT ao longo dos últimos anos. Eu sou a favor da adopção por casais homossexuais, porque entendo que é no terreno que se deve avaliar cada família e concluir se ela tem, ou não, condições para acolher uma criança. Acredito que num mundo ideal qualquer miúdo deve crescer com uma figura materna e uma figura paterna ao seu lado, mas penso que a dinâmica mimo-autoridade pode ser perfeitamente alcançada dentro de um casal homossexual. Mais do que isso, existem casos terríveis, envolvendo crianças abusadas, em que a figura paterna adquire uma dimensão de tal forma ameaçadora que a criança poderá crescer muito mais feliz e equilibrada num ambiente exclusivamente feminino. O mundo é um lugar complicado e a sua diversidade deve ser vista como uma riqueza, e não como uma ameaça. Mas até por isso, deveríamos estar todos a discutir com argumentos uns bons furos acima do nível cavernícola, jamais utilizando as crianças como armas de arremesso nas lutas de cada um.