Um ano de Antónios
Das cartas de guerra de António Lobo Antunes, por Ivo Ferreira, à apropriação alegremente obscena, por João Pedro Rodrigues, da figura de Santo António de Lisboa: entre os dois Antónios, os portugueses que veremos em 2016.
Por estes dias já se sabe que o alferes António Lobo Antunes foi destacado para o Festival de Berlim: Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira, é o filme português que se apresenta na competição de longas-metragens. “Adapta” D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra. Isto é, filma a partir das cartas que um jovem médico – 28 anos – com sonhos de escritor mas atirado para a guerra colonial em Angola, para onde fora destacado após a conclusão do curso de Medicina (comissão de serviço 1971-1973), escreveu à mulher grávida que deixara em Lisboa.
O “adapta” vem entre aspas porque, visto daqui, Cartas da Guerra mostra-se como projecto singular sobre o qual talvez não seja adequado facilitar com as bengalas do costume: parte do livro que as filhas do escritor, Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, editaram (em 2007) com as cartas que o pai escrevera à mãe de ambas, constitui o passado biográfico de quem não só ainda pertence ao mundo dos vivos como se agigantou na esfera pública (personagem interpretada pelo actor Miguel Nunes) e é material de que um realizador se quis apropriar. Melhor dizendo: é material que Ivo Ferreira toca para por ele ser tocado, deixando a sua vida ser interceptada pelas biografias dos outros como quem é susceptível aos fantasmas da História – ao dizer isto pensamos, por exemplo, numa longa-metragem anterior, Águas Mil, de 2009. Ivo Ferreira, durante a rodagem do filme (produção O Som e a Fúria, argumento do realizador e de Edgar Medina, uma parte da rodagem na província do Kuando Kubango, Angola) confirmava ao Ípsilon: “O filme tem a ver com coisas que me interessam, um país a agonizar no fascismo, e nesse cenário algo que tem a ver com crescimento, o crescimento de um autor, de um pensador, alguém que caminha para ser melhor, como namorado, como marido, como pai. Embora eu não tenha tido qualquer experiência biográfica, família em África ou pai que foi para a guerra, a verdade é que a guerra vive comigo há uma vida, até pela opção política dos meus pais, pelo exílio. E parece que continuamos com pudor em filmar isso. Eu próprio, quando miúdo, achava que aqueles homens tinham ido para a guerra porque eram pessoas más, quando afinal tinham sido empurrados. O que me interessa é saber como é que um país pode atirar os seus homens para uma situação que não faz sentido.” Adiantou mais alguma coisa: que um trabalho de investigação histórica, de entrevistas a antigos combatentes, de recolha documental, iconográfica e musical do período, coexistiu com o mergulho nas recorrências dos primeiros livros do escritor, Memória de Elefante e Os Cus de Judas.
Cartas da Guerra chegará aos ecrãs na segunda metade do ano. Ainda no primeiro semestre de 2016 estreará Aqui em Lisboa, o filme com que o IndieLisboa celebrou o seu 10º aniversário, convidando Dominga Sotomayor, Marie Losier, Denis Côté e Gabriel Abrantes, presenças regulares nesse festival de cinema independente, a olharem para Lisboa. Antes disso, quase daqui a pouco, será a vez de John From, de João Nicolau, e de Posto Avançado do Progresso, de Hugo Vieira da Silva – dois colonizadores portugueses do século XIX no coração das trevas, deles próprios e do Rio Congo.
O que se passa em Rio Corgo, de Sérgio da Costa e Maya Kosa, é também uma caminhada, em direcção a algo de misterioso e de destemido, que faz o filme deslizar para o que está do outro lado de uma transfiguração: Sérgio da Costa e Maya Kosa acompanham, amparam, o sentimento de morte e o desejo de ficção vagabunda de uma personagem real, um pastor, barbeiro, jardineiro, palhaço, mágico, que lhes apareceu numa aldeia do Douro, o senhor Silva. É como uma balada e será um dos filmes do ano.
João Pedro Rodrigues estará neste momento ainda a “realinhar” o seu passado. Trabalha na montagem de O Ornitólogo. Era o que ele queria ser, João Pedro: era com a Biologia, era a observar pássaros, que achava que ia ser feliz. Acabou por ser “desviado” para o cinema. Mas nota, e é fundamental notar isso, que com os filmes continuou a observar os prodígios que se revelam. O Ornitólogo, como nos conta, é então uma forma de pensar “o que poderia ter sido” o seu percurso. Mas também é um regresso a si próprio. Projecta-se no mito de Santo António de Lisboa, que já estivera na origem de uma curta, Manhã de Santo António (2012), filme que abriu o caminho para o que veremos este ano. Que ele nos descreve como a apropriação, “de forma alegremente obscena”, da história de uma figura mítica portuguesa, tirando-a dos séculos XII e XIII para uma contemporaneidade sem tempo. E como "se chega a uma transcendência, como a partir do prosaico se chega a algo de mais intangível”.
De uma história aventureira, com evangelizações, derivas e naufrágios, João Pedro salienta “o lado de western” – fala em Anthony Mann e Budd Boetticher, evoca a figura de pedra que foi, por exemplo, Randolph Scott; isso, e a ternura dessa dureza e desse estoicismo, é algo que habita no seu protagonista, o francês Paul Hamy.
Filmado em Trás-os-Montes, ao longo de um rio, O Ornitólogo é o seu primeiro filme “totalmente passado na natureza”.
“É como se o décor ganhasse carnalidade.” Esta é a história de alguém que desaparece e se reinventa na natureza, diz. Não era isso O Fantasma, um dos grandes filmes do cinema português? Ele concorda: “tem a ver com O Fantasma, mas depois de eu ter passado por todos os outros filmes, depois de ter experimentado outras coisas, porque me sinto mais livre hoje”