A nação continua a ser indispensável

Obama pôde dizer aos americanos sem exagerar que a América continua a ser a maior potência mundial, que está forte e que tem o futuro à sua frente.

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1. Em 2004, durante a convenção democrata que escolheu John Kerry para enfrentar o Presidente George W. Bush, foi quase por acaso que um jovem senador do Illinois relativamente desconhecido foi convidado a pronunciar o discurso principal. Era negro, tinha um nome no mínimo esquisito, foi das raras vozes que se opuseram à guerra no Iraque (não à do Afeganistão), ainda ninguém lhe prognosticara uma grande carreira política. Silenciou e, depois, electrizou a audiência. Anunciou ao que vinha numa frase que hoje, no seu último discurso do estado da União, muita gente relembra e não pelas melhores razões. “Não há Estados vermelhos e Estados azuis, há os Estados Unidos da América.” A partir daqui, o poder da palavra transformou-se na sua arma mais eficaz, e a sua vida na melhor prova do sonho americano. Ontem, passados sete anos sobre a primeira eleição, a sua principal frustração é precisamente não ter conseguido mudar a forma de fazer política em Washington. “Como é que podemos fazer com que a nossa política reflicta o que temos de melhor e não o que temos de pior.” Pelo contrário, a radicalização política tem hoje a sua expressão máxima nas primárias do Partido Republicano, que domina o Congresso e o Senado, cada vez mais numa versão Tea Party. No seu discurso, Obama reconheceu a derrota mas desafiou a América para o combate em torno da sua alma verdadeira, apontando o dedo a Donald Trump. Não vai desperdiçar os dez meses que lhe restam para lutar pelas causas que não conseguiu vencer: desde a liberdade de porte de arma até ao encerramento de Guantánamo, contornando o Congresso através de “ordens executivas”. Não foi um Presidente cansado e desiludido que falou aos americanos. Foi um Presidente confiante, que quer ajudar a escrever o seu lugar na História.

2. A herança que recebeu do seu antecessor foi certamente uma das mais pesadas das últimas décadas, conjugando um enorme desgaste da imagem da América no mundo e a maior crise financeira e económica desde a Grande Depressão. A sua eleição, por si só, mostrou que a América consegue sempre superar-se a si própria. Hoje, a economia americana recuperou a sua solidez, provando que o seu declínio económico foi amplamente exagerado. Quando chegou, a economia destruía cerca de 800 mil empregos por mês. Hoje, o desemprego reduziu-se a metade (menos de 5%), o défice passou de 10% para 3%, graças ao crescimento económico, mas também a alguma ajuda dos republicanos, que o obrigaram a fazer concessões. O crescimento faz inveja a qualquer potência emergente. Uma nova revolução tecnológica deixa os EUA de novo muito à frente dos seus parceiros mais desenvolvidos. Conseguiu um bom acordo em Paris, na Cimeira do Clima. Investiu nas energias limpas como nenhum outro Presidente (cresceram 2000 por cento). Conseguiu revolucionar a indústria automóvel destroçada pela crise. Num balanço exaustivo dos sete anos que leva na Casa Branca, O Mundo Que Ele Construiu, o site Politico vai até às mudanças menos espectaculares (como o Obamacare), mas que alteraram a forma de funcionar da sociedade americana. “Obama acabou por ser muito mais um ‘doer’ do que se previa”, escreve o autor do texto. Fez a reforma do sistema financeiro muito antes da Europa (que ainda a está a fazer). Falhou em boa parte na sua promessa de aumentar os rendimentos da classe média, estagnados nos últimos 30 anos. Mas conseguiu minorar drasticamente o efeito das dívidas dos estudantes universitários (que chegaram a ser olhadas como o segundo subprime). Destruiu a estratégia dos republicanos durante o primeiro mandato: impedir o segundo. Hoje, os republicanos pagam o preço dessa obsessão, aceitando o domínio do Tea Party, cuja consequência mais perniciosa é o êxito de Donald Trump, muito para além do que se julgava possível. O seu último estado da nação foi também uma invectiva indirecta ao que Trump representa, desafiando os americanos a resgatar a verdadeira alma da América e a rejeitarem a política do medo.

Quando o seu primeiro secretário do Tesouro, Timothy Geithner, lhe disse que o seu mérito principal foi evitar a Grande Depressão, respondeu: “Não quero ser definido por aquilo que evitei.”

3. Entretanto, a sua promessa de uma nova forma de liderança americana num mundo em profunda transformação teve alguns resultados, mas também alguns desafios ainda sem resposta convincente. Na terça-feira à noite, pouco antes de sair para o Congresso, dez marines americanos foram capturados pelos Guardas da Revolução iranianos (deliberadamente?), lançando uma sombra (que depressa se dissipou) sobre a mais emblemática das suas realizações: o acordo sobre o programa nuclear iraniano, confirmando a eficácia da diplomacia e cumprindo a promessa que fez no discurso da tomada de posse em 2009: estender a mão aos inimigos, esperando que eles abram o punho. Foi assim com Teerão e foi assim também com Cuba (voltou a desafiar o Congresso a levantar o embargo que é já uma relíquia da História). Queria libertar-se do barril de pólvora do Médio Oriente, mas a guerra na Síria e uma nova estirpe de terrorismo demencial sob a forma de Estado Islâmico obrigou-o a rever prioridades, nem sempre da forma mais clara. Queria que a Europa tomasse conta da sua própria segurança, mas o revisionismo agressivo da Rússia, testado na Ucrânia, obrigou-o a voltar a olhar para a segurança europeia. A sua relação com Angela Merkel não começou da melhor maneira. A Rússia e o terrorismo acabaram por os aproximar. Nunca teve grande simpatia por David Cameron, mas encontrou um aliado fiável em François Hollande. Voltou agora a lembrar que os EUA não podem ser os “polícias do mundo”. Pelo menos sozinhos.

Olha a China como o maior desafio estratégico dos EUA no médio prazo, mas o “pivot” do Atlântico para o Pacífico, que anunciou logo no início do seu primeiro mandato, começou por ser mal compreendido pelos europeus. Confortar os aliados que são vizinhos da China e cooperar, ao mesmo tempo, com ela, é um exercício difícil. Na Europa, vários governos criticam (em voz baixa) o que consideram um excesso de dureza de Washington com Pequim.

Na terça-feira à noite, pôde dizer aos americanos sem exagerar que a América continua a ser a maior potência mundial, que está forte e que tem o futuro à sua frente. Num mundo em desordem, mas ainda como a nação indispensável.

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