Cartas à Directora

A morte em “prime time”

Um homem morreu. Os seus, celebram-no, envoltos no luto, choram o que têm a chorar – muito - vivem uma tristeza que não se descreve com palavras. Extravasam raiva, sentem-se injustiçados, impotentes. Amanhã vão continuar a viver, com uma parte a menos, um vazio que deixa um buraco negro que não vai desaparecer, impresso neles até que as suas próprias mortes os apaguem, quando for o momento de ser.

Tomamos conhecimento dessa morte, notificados pelos jornais, constantemente a sermos notificados de mortes chocantes, tão banais como a vida. Reagimos em banho tépido, partilhamos comentários frouxos, e esquecemos em maneirismos egoístas, enojados por um tema batido.

Não foi connosco, foi ao lado, na distância física de um ecrã de televisão, ou de uma folha de jornal. E enquanto não é connosco, é um acontecimento distante, mórbido, um espectáculo.

Quando as mortes são muitas e as imagens arrepiantes, solidarizamo-nos, invocamos os Direitos Humanos, exorcizamos a maldade do mundo, sofremos reacções alérgicas, e a seguir esquecemos, porque ninguém aguenta estar sempre a olhar para o negro.

A verdade inconveniente é que vivemos num país que desrespeita os direitos da condição humana, que maltrata pela negligência, a omissão, o desprezo, a soberba da palavra política aldrabona, prostituta, desleixada para os outros, só preocupada com o seu bem-estar.

Quanto um alto dignitário tem uma urgência, telefona para os amigos, e se não houver resposta imediata cá, enchemos-lhe o depósito de um avião de Estado, para se cuidar lá fora.

Não há castigo para os influentes com correligionários influentes, eles pairam acima do pecado. Não há crimes de colarinho engomado, é tudo um “suponhamos”, maledicência natural dos seres menores, nós, invejosos e pouco diligentes.

Esse tipo de crimes – que nunca o são porque os políticos não cometem crimes - resolvem-se nas comissões de inquérito, que se hão de constituir, sem desfechos, arrastadas em infinidades, que trazem o esquecimento.

Julgamos que estamos a pagar para ter uma equipa de neurocirurgia na principal urgência da maior cidade do País mas o dinheiro vai para os honorários de banqueiros incompetentes, que gerem tão bem as suas vidas e cuidam tão pouco das nossas.

Poucos de nós – sensíveis, logo fracos - enjoam, regurgitam bílis doente, cospem impropérios, gritam abafado.

Não passam de loucos, aos olhos desconfiados dos transeuntes que circulam pela rua de manhã, de ombros descaídos, pálidos, olhos encovados por uma noite de insónia, derrotados porque o árbitro roubou um penalti, ou porque ficaram acordados até às tantas, na esperança de assistirem a uma cena de sexo explícito numa série ao vivo com vacas e bois, bácoros, e muitas galinhas.

Uma vida, no meu país, vale pouco, pouco mais que o tempo de glória em que a sua morte é anunciada em prime time.

Luís Robalo, Lisboa

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