A ideologia e a realidade

Para Cavaco não há várias escolhas possíveis porque a realidade proíbe as escolhas. Cavaco é figadalmente contra a democracia, contra a possibilidade de escolher.

1. À guisa de brinde de fim de ano, Cavaco Silva decidiu oferecer-nos mais uma pérola na intervenção que fez, na semana passada, no encerramento do Conselho da Diáspora. "Observando a zona euro”, disse o PR, “verificamos que a governação ideológica pode durar algum tempo, faz os seus estragos na economia, deixa faturas por pagar, mas acaba sempre por ser derrotada pela realidade".

O tópico é um dos temas fetiche de Cavaco Silva, mas é significativo que, em fim de mandato, o PR queira sublinhar o pouco que evoluiu ao longo da sua vida política. Para Cavaco, existe uma única maneira de ver o mundo e de tomar decisões, uma única maneira de pensar e de sentir, uma única perspectiva possível, um único interesse possível, um único objectivo possível, uma única atitude: a sua. Ele marcha bem, os outros marcham mal. Como o próprio explicou uma vez, Cavaco acha que duas pessoas que possuam a mesma informação não podem deixar de decidir a mesma coisa. Não querendo atrever-se a afirmar que a sua ideologia e que os seus interesses são melhores que os outros, Cavaco coloca-se, como sempre fez, fora do mundo, acima do mundo, acima da política, acima da ideologia. As suas opiniões não são opiniões, são factos. Ele não é político, não é ideológico, não defende interesses particulares. Os outros sim. A sua política é a política que é, a dos outros a política que não pode ser. Ele é… Deus.

Para Cavaco, a realidade impõe todas as escolhas e a política poderia reduzir-se a um programa de computador, alimentado pela informação relevante. Para Cavaco não há várias escolhas possíveis porque a realidade proíbe as escolhas. Cavaco é figadalmente contra a democracia, contra a possibilidade de escolher. A própria ideia de escolha e de vontade é infantil, impossível. E, quem tenta escolher, quem tenta moldar o presente e o futuro de acordo com a sua visão do mundo e a vontade dos cidadãos, choca contra a brutal violência da realidade, deixando “facturas por pagar”. Para Cavaco, a Natureza tem horror às escolhas. Cavaco finge que não sabe que cada um de nós tem interesses e desejos diversos, que diferentes grupos sociais têm diferentes visões e objectivos. Cavaco quer convencer-nos de que a política consiste em fazer sempre o jogo do mais forte, da “realidade”, em nunca tentar escolher. Cavaco é um colaboracionista na alma, sempre obedecendo ao mais forte e tentando convencer-nos a obedecer também, a nunca pensar, a não desejar.

2. Ainda sobre o Banif, vamos lá ver se eu percebi. A Direcção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia recusou uma injecção de capital do Estado português no Banif porque isso constituiria uma entorse às regras da concorrência bancária, da mesma forma que recusou a integração do Banif na Caixa Geral de Depósitos, pelas mesmas razões. Mas a mesma DG-Comp aceitou agora a injecção de 2.200 a 3.000 euros no mesmo Banif (aliás: forçou essa medida) quando se tratou de vender a parte boa do Banif ao Banco Santander, que é, por acaso, o maior banco da eurozona.

Ou seja: a DG-Comp usou todos os instrumentos possíveis para inviabilizar como banco independente (ou como parte integrante da CGD) o Banif - que a sua administração, pela boca de Jorge Tomé, espantosamente, garante que estava de pedra e cal - mas parece ter usado igualmente todos os instrumentos ao seu alcance para beneficiar o grande banco Santander nesta transação.

Acontece que a mesma DG-Comp tinha recusado nos últimos tempos, segundo as notícias vindas a lume, oito planos de reestruturação do Banif e sempre defendeu, aparentemente como posição de princípio, que o Banif era insustentável como banco independente. Assim, para além da análise da acção (ou inacção) do XIX governo (de Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque) e do governador do Banco de Portugal, assim como do actual governo, a comissão parlamentar de inquérito do Banif deverá debruçar-se atentamente sobre a acção ao longo deste caso da poderosa DG-Comp da União Europeia, que pareceu determinada em aproveitar a oportunidade de liquidar um pequeno banco português para engordar um grande banco espanhol, à custa dos contribuintes portugueses.

Existe uma justificação (“técnica” como diria Cavaco, “ideológica” na realidade) para essa atitude. Há quem defenda a necessidade de consolidar os bancos europeus em megabancos, de forma a que possam resistir a períodos de crescimento anémico como o actual e de forma a criar instituições capazes de competir com os grandes bancos americanos. A ser essa a estratégia europeia, compreender-se-ia a pressão para a consolidação. Mas há alguns problemas essenciais: essa estratégia não pode ser adoptada sem uma profunda e aberta discussão na União Europeia e não pode ser levada a cabo clandestinamente e sob falsos argumentos nem, muito menos, à custa dos pequenos bancos dos pequenos países e dos contribuintes desses países, condenando-os a ir alimentar os grandes bancos dos grandes países. Além de que a ideia de megabancos cuja eventual falência criaria, por definição, uma catástrofe sistémica e que, por isso, teriam sempre de ser resgatados pelos contribuintes europeus quando os seus banqueiros começassem a roubar os cofres, não parece ser o cenário mais desejável para a União Europeia.

jvmalheiros@gmail.com

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