Todos somos turistas
Lisboa e o mundo encontram-se na encruzilhada do turismo de massas. As cidades atractivas do séc. XXI existem entre paradoxos, na fronteira entre serem metrópoles de sucesso e vítimas dele. O holandês Marc Glaudemans dedica-se a pensar como é que se podem criar ambientes urbanos sustentáveis.
Todos somos turistas. Mesmo os que não se sentem forçosamente identificados com aquilo a que chamamos turismo. “E é bom termos essa noção, para que não olhemos para os turistas como se fossem extraterrestres”, diz-nos por entre risos o holandês Marc Glaudemans. É o fundador e director do Stadslab European Urban Design Laboratory, um think tank internacional sem fins lucrativos e também laboratório de design urbano, que tem actuado ao nível do impacto do turismo massificado no espaço público, no desenvolvimento urbano e no dia-a-dia dos cidadãos das cidades europeias. “O turismo não pode ser eliminado, é qualquer coisa à qual nos temos de adaptar”, acrescenta, “mas pode ser gerido, regulado ou sustentado.”
É a sua segunda vez em Lisboa. Foi a associação Academia Cidadã, fundada por activistas que pertencem a diversos movimentos cívicos portugueses, em conformidade com a Câmara Municipal de Lisboa, que o desafiou a desenvolver um programa de Master Class — que decorrerá em Abril de 2016 — que contará com participantes internacionais e portugueses, abordando a gentrificação e o turismo de massas em Lisboa, no sentido de serem desenhadas estratégias partindo de um caso concreto, o bairro da Mouraria.
A capital portuguesa, onde hoje circulam os tuc-tuc que se viam na Tailândia, constituiu, diz, um estudo de caso com interesse, ou não fosse uma das cidades europeias com maior crescimento turístico nos últimos anos — em 2014, cresceu cerca de 15,4% face a 2013, segundo a Associação de Turismo de Lisboa.
Segundo ele, nada de estrutural ainda foi colocado em causa, podendo aprender-se com os equívocos cometidos noutros territórios como Barcelona, ao mesmo tempo que Lisboa pode servir de embrião para outras cidades, num tempo histórico em que o turismo é uma das questões globais mais desafiantes.
Encontramo-nos no Chiado, coração de Lisboa, e percebemos logo que está por dentro do contexto do que se passa na cidade. “Os sintomas repetem-se de cidade para cidade. Por norma começa com o regozijo de ver chegar turistas, depois advêm preocupação e mais tarde a reacção a esse estado de coisas.”
É isso, sim. Inicialmente existiu satisfação pelos proveitos económicos e orgulho pelo reconhecimento. Depois adveio a apreensão de quem vive na zona histórica, e também nas adjacentes, pelas perturbações que foram surgindo. No presente já se percebeu que alguma coisa terá de ser feita. Não há alarmismo. Mas existe o confronto com uma realidade nova, com tudo o que isso acarreta de conflito.
Nos cafés, nas esplanadas, na rua, enfim, no espaço público, as marcas de hostilidade entre autóctones e forasteiros ainda são subtis, mas não é preciso ser vidente para antecipar que irão aumentar. Isso já se vislumbra nas expressões de enfado. Nas incompreensões.
Nunca se falou tanto de turismo em Portugal como nos últimos anos. Durante muito tempo parecia ser um tema sazonal, ajustando-se aos meses de Verão no Algarve. Foi uma longa época em que o país se pensava a si próprio como destino de Verão. Com o fluxo dos últimos anos a atingir algumas cidades portuguesas — com relevo para Lisboa e Porto —, já não é assim. “A ideia sazonal morreu. Hoje temos de pensar o turismo como fenómeno de todo o ano”, diz Marc. “Existe uma amplificação temporal do uso turístico do espaço. O turismo já não é ocasional, é constante. Se se tornou global, o tempo turístico é agora total.”
A própria ideia de turismo mudou. Dizemos que estamos na era do turismo de massas, mas só se o pensarmos como algo possuído por uniformidade ao nível do tempo, dos lugares e das preferências, porque as ofertas são infindas, com uma variedade de lugares, paisagens e experiências à nossa espera. Assistimos a uma intensificação dos tipos de turismo conhecidos, a que não é estranha a revolução dos voos de baixo custo que amplificaram os utentes das companhias low cost.
A multiplicação de tipos de turismo não tem fim: enológico, de sobrevivência, gastronómico, sexual, religioso, cultural, LGBT, de praia. O resultado é uma segmentação do mercado. Encontramos tantos destinos como potenciais segmentos de consumidores. O turismo actual não é de massas, embora seja mais massificado do que nunca, cumprindo-se a partir do consumo emocional de um certo lugar. “Enquanto turistas, sugamos a paisagem em função de ela nos devolver uma experiência, expor uma história ou garantir uma emoção. Por isso as cidades turísticas se vêm obrigadas a parecer-se com esse imaginário que o viajante espera encontrar.”
Às tantas, na nossa deambulação pelo Chiado, paramos ao fundo da Rua Garrett junto a uma dessas lojas de marca global que estão em qualquer parte do mundo. Quando se quer falar de homogeneização, recorre-se quase sempre a estes exemplos. Diz-se que as metrópoles perdem a sua identidade quando são tomadas por este tipo de lojas. “Em parte é verdade porque tendem a crescer de forma semelhante em todo o lado”, afirma Marc, “mas o segredo, como sempre, é conseguir equilíbrio entre este tipo de comércio global e o local. Neste caso, mantiveram a fachada do edifício, não é muito intrusivo, embora o que encontramos no interior seja o mesmo aqui ou em Roma.”
É verdade. Mas ao contrário do que se possa pensar, não são apenas os locais que apreciam este tipo de comércio. Os turistas, mesmo os que dizem estimar a diferença dos lugares que visitam, também não as perdem de vista. Apesar de tudo, tem de existir alguma familiaridade no ambiente que se visita. “Este tipo de pavimento, a calçada, os edifícios, as pessoas ou a comida, fazem parte do contexto português e são enaltecidos. Os turistas esperam de alguma forma encontrar essa identidade, mas ao mesmo tempo desejam o que têm em casa. O mesmo tipo de conforto, os seus cafés, a sua comida, as suas lojas. O turista gosta de sentir-se longe de casa, mas não muito longe.”
O turismo, já se percebeu, vive entre tensões não resolvidas. Não é uma questão portuguesa. Em todo o mundo se discute como criar ambientes urbanos coerentes e sustentáveis. Como preservar a herança urbana. Ou como fazer com que uma maioria de cidadãos possa beneficiar dessa indústria em vez de apenas alguns grupos privilegiados. “Isso é o que todas as cidades procuram: como preservar uma identidade genuína enquanto absorve um número elevado de turistas. É difícil por causa da própria natureza transformadora do turismo que, mesmo quando é predominantemente individual, pode ter um impacto maciço. Em princípio, o turismo 2.0 ou 3.0 — como o Airbnb ou plataformas online semelhantes — têm um impacto reduzido. Baseiam-se no que existe e em propriedades individuais. Mas as áreas onde predomina podem perder o seu carácter distintivo e tornarem-se ‘turistificadas’, ficando menos atractivas, não só para os turistas como para os locais.”
Como garantir, então, a sustentabilidade ambiental, social e cultural das cidades? O diagnóstico é conhecido: sobreocupação do espaço público. Homogeneização do comércio. Banalização da paisagem urbana. Habitantes a abandonar o centro. Aumento dos preços de arrendamento motivado pela procura do alojamento temporário. Proliferação de hostels e outras formas de alojamento que põem em risco a função residencial da população autóctone. Não é apenas a qualidade de vida dos residentes que é posta em causa, mas a sua capacidade de viver na área. Quando o interesse dos residentes é suplantado pelos benefícios negociais, muitas vezes o efeito é paradoxal, acabando na degeneração daquilo que era atraente para os visitantes: a atmosfera única da cultura local.
Até agora, na maior parte das cidades, tem-se apostado, como reacção, em políticas de contenção, de restrição ou de deslocalização. Limitação do número de cruzeiros, construção de réplicas das atracções turísticas para deslocalizar a pressão dos visitantes, diversificação da oferta cultural de maneira a que não sejam apenas as zonas históricas a ser percorridas, limitação do número de noites permitidas de aluguer de casas privadas, controlo do número de visitantes ou regulação da utilização máxima do Airbnb, eis algumas das medidas tomadas nos últimos anos nos mais variados locais do globo. Numa das cidades onde o turismo tem tradição, Paris, os turistas são vistos como “cidadãos temporários” com direitos, mas também obrigações. Ainda assim, essas medidas não bastam. É preciso antecipar as mudanças, percebê-las na sua curva ascendente, para melhor as gerir.
Essas políticas de antecipação “devem incluir planos de zoneamento e áreas de desenvolvimento integrado para que o equilíbrio do desenvolvimento urbano seja salvaguardado a longo prazo”, afirma Marc, apontando para a participação de todos nessa dinâmica. “O desenvolvimento destes instrumentos de planeamento são um processo de co-criação, no qual os actores públicos e privados e os cidadãos têm de trabalhar unidos para formular uma visão estratégia dos seus bairros.”
Num processo colaborativo deste género, o desenvolvimento equilibrado pode ser definido por todas as partes interessadas, a partir de uma base de valores e interesses compartilhados. “As acções individuais que conduzem à gentrificação ou à sobrecarga do turismo são racionais, mas o seu efeito de conjunto pode ser potencialmente negativo para toda a comunidade”, aponta Marc. “É por isso que um plano de desenvolvimento para uma determinada área deve ser apoiado no longo prazo, para que todos os actores possam ver cumpridas as suas aspirações. Pelo menos até um certo ponto.”
Durante muitos anos, a indústria do turismo não foi levada muito a sério. Era consensual, junto de governos, organismos internacionais e meios de comunicação que a energia, o petróleo, as finanças, a ciência, a agricultura e, vá lá, a cultura, eram vitais para o desenvolvimento económico. O turismo não entrava nas agendas dos poderosos. Hoje, segundo Marc, já não é assim. “É uma das indústrias mais relevantes em termos económicos. E não é como a indústria do petróleo, onde existem talvez dez grandes players. No turismo é tudo muito mais disperso, individual e democrático.” Será verdade. Mas a competição entre destinos é também renhida. Hoje todas as cidades querem ser distintivas, únicas e aprazíveis.
Segundo o secretário-geral da Organização Mundial do Turismo (OMT), o jordano Taleb Rifai, citado pelo El País, o mundo de hoje vive duas revoluções: “A tecnológica, que conecta o mundo virtualmente, e a das viagens, que nos conecta fisicamente.” Em 2014, segundo essa organização dependente das Nações Unidas, 1138 milhões de turistas passaram pelo menos uma fronteira — o que significa que mais de um em cada sete habitantes do mundo realizou uma viagem internacional. Outro dado significativo: um em cada onze empregos no mundo foram criados graças ao turismo, embora também existam muitas vozes críticas a sugerir que esse tipo de ocupação é maioritariamente precário, de baixos salários e apoiado em contratos temporários.
É inegável: o turismo gera receitas e por vezes reabilita zonas urbanas. Mas também pode contribuir para a diminuição da qualidade de vida local. Esta é a encruzilhada das cidades atractivas. Por vezes fica-se com a ideia de que a indústria do turismo tira vantagem do que a cidade e a comunidade têm para oferecer (hospitalidade, ruas, monumentos, equipamentos) mas os resultados económicos nunca revertem para o colectivo, apenas para privados.
Para Marc, esta é uma verdade parcial. “Os turistas e as empresas da indústria pagam impostos específicos que podem acabar por beneficiar toda a comunidade se as autoridades municipais o souberem gastar sabiamente. Mas é verdade que esses instrumentos fiscais podem ser melhorados e adaptados para lidar com novos tipos de turismo, que nem sempre são abrangidos por sistemas fiscais desactualizados. A cidade de Amesterdão, por exemplo, fez um acordo com a Airbnb, em que um imposto de 5% é adicionado a todas as reservas feitas através desta plataforma. Esta é uma forma de criar condições de concorrência equitativas, não favorecendo um determinado tipo de turismo. Mas existem propostas mais radicais como as taxas de ingresso em Veneza ou as de alojamento.” Recorde-se que, esta semana, ficou a saber-se que Câmara de Lisboa não vai, ao contrário do que estava previsto, começar a cobrar em Janeiro a Taxa Municipal Turística a quem chegar à cidade por via aérea ou marítima. Mas quem dormir num hotel da capital vai ter de pagar um euro por noite a partir do primeiro dia do próximo ano.
Para Marc Glaudemans, o importante é “certificarmo-nos de que os benefícios do turismo são investidos de forma igualitária por toda a cidade e criadas as soluções para manter uma certa simetria”, mesmo as zonas que ficam fora dos circuitos turísticos. “Essas áreas não colhem benefícios, mas podem sentir os efeitos negativos, ao nível do congestionamento do tráfego ou porque os preços de serviços e bens aumentaram, por exemplo.”
Nesse sentido, o governo municipal deve criar condições para uma distribuição justa para evitar o aumento de desigualdades devido aos benefícios económicos do turismo. “Preferia encarar isso como uma oportunidade para as cidades que atraem um grande número de turistas e não como um problema.”
Na actualidade, já não é possível pensar nas questões do turismo a partir de um prisma local. Para o comprovar, Marc vai apontando para os imóveis que na Baixa ou Martim Moniz estão em obras, com anúncios de venda da parte de imobiliárias que operam no mercado internacional. “Este fenómeno é global”, reflecte. “Provavelmente, alguém em Londres acabará por comprar este edifício e daqui construirá um hotel. Este é um indicador de como o fluxo de capitais é global e de como a regeneração urbana não é um processo apenas local porque as partes interessadas são de diferentes origens e, na verdade, com interesses diversos. É necessário pensar nessas forças globais, e Lisboa, hoje, faz parte dessa comunidade mundial.”
Curiosamente, quando pensa em casos actuais de sucesso, ao nível das cidades que conseguem ter uma relação harmónica com o turismo, não lhe vêm à cabeça capitais. “As cidades secundárias talvez consigam um padrão de vida mais elevado para os seus cidadãos, na sua relação com o turismo, do que as capitais ou as zonas de atracção turística”, diz.
“Haverá sempre excepções, mas quando penso em San Sebastian, no País Basco espanhol, vislumbro uma cidade costeira atractiva, que é acima de tudo um local para viver e trabalhar, integrando especificidades turísticas, como a gastronomia, o festival de cinema ou o surf na sua identidade. Lyon, em França, é outro exemplo de uma cidade que mantém a sua matriz, combinada com a realização de eventos de expressão internacional. As cidades que são conhecidas por acontecimentos sazonais específicos, em vez de serem destinos de todo o ano, talvez estejam mais preparadas para evitar a espiral negativa dos excessos turísticos. Mas não existem fórmulas perfeitas e as situações mudam rapidamente.”
É a pensar na forma como se podem administrar as contradições que são hoje uma constante do turismo global que Marc está em Lisboa. Nas ruas do bairro da Mouraria diz sentir que ali ainda se distinguem as relações de proximidade e há um estilo de vida humanizado. Mas não foi isso que o levou a escolher o bairro para centro da sua intervenção.
“Escolhemos esta área porque há aqui muitos paquistaneses, indianos e chineses, ou seja, tem uma segunda camada para além de ser um bairro tradicional, o que lhe acrescenta complexidade. Em Barcelona, por exemplo, os bairros com estas características estão num acelerado processo de transformação e alguns perderam as suas características basilares.”
Um bairro é um ecossistema complexo. Não surpreende a tensão que se manifesta entre residentes e frequentadores ocasionais, entre comércio tradicional e novas actividades ou entre utilizadores diurnos e nocturnos. A harmonia é quase sempre instável. Mas é dessa conjugação de actuações, e da forma como os diferentes actores se relacionam entre si, que depende o equilíbrio. A coexistência nem sempre é fácil. Mas é possível. Exige-se actuação pública. Mas com pinças. Às vezes mais vale ser orientadora ou apenas reguladora, do que pró-activa.
O Stadslab é parte da Universidade Fontys, na Holanda, e tem ajudado a introduzir modelos inovadores de governança urbana. Na Mouraria a ideia é semelhante. “A nossa acção vai no sentido de ajudar municípios e agentes privados a salvaguardarem um desenvolvimento urbano equilibrado. Portugal não está familiarizado com o desenvolvimento em área e acreditamos que este modelo de co-criação colaborativa pode ser benéfico aqui.”
A Master Class de Abril será supervisionada por especialistas internacionais mas os participantes serão uma mistura de profissionais locais e internacionais, entre trabalhadores municipais, arquitectos, urbanistas e organizações comunitárias. O objectivo é trabalhar durante dez dias com um grupo de 15 profissionais e manter uma relação interactiva com os cidadãos e as organizações locais. A apresentação final das ideias e recomendações ocorrerá num evento público.
Apesar das lojinhas de recordações, dos novos cafés e mercearias que prometem invariavelmente “produtos tipicamente portugueses” e de alguns sintomas de gentrificação na zona histórica, Marc é da opinião que o seu carácter se mantém. “Sente-se que a regeneração urbana ainda é orgânica, não é artificial, o que é bom. Vimos poucas transformações de grande escala irremediáveis. Está a acontecer uma transformação, mas é lenta e orgânica, o que é bom para a cidade, ao mesmo tempo que o seu caracter histórico pôde ser recriado porque alguns edifícios estavam muito degradados.”
Mas esse equilíbrio é instável. Tem que ser reavaliado a todo o momento. A indústria do turismo vive processos disruptivos muito rápidos. Por exemplo, em Nova Iorque, estima-se que 50% da oferta de Airbnb já não se encontra nas mãos dos habitantes, mas sim de empresas que se servem do serviço para escaparem às normas hoteleiras. São assim as cidades do século XXI, a viverem entre paradoxos: sendo sedutoras, mas sem quererem ser esmagadas pelo seu desejo, assumindo que o turismo pode ser voraz, mas não prescindindo dele, compreendendo que a fronteira entre ter sucesso e ser-se vítima dele é ténue.