O pássaro de asas cortadas
Reduzir a política de saúde ao SNS é navegar num mar de equívocos.
O pássaro de asas cortadas move-se, vive, reproduz-se mas não levanta voo e por essa razão, não voa. Geralmente só consegue ver o que lhe está imediatamente à frente do bico. E também dificilmente terá um golpe de asa. Esta é a imagem que melhor se adapta ao programa de saúde do XXI governo, mesmo já considerando as contribuições que os partidos envolvidos nesta solução governativa deram para a versão que foi discutida e aprovada na Assembleia da República. Relativamente ao que há para fazer pode dizer-se que este programa é uma espécie de evolução desmemoriada, uma vez que quase tudo está dito e escrito sobre os caminhos que a política de saúde deve percorrer, sobre o que há para fazer, mas que está omisso no programa do governo.
A principal e mais grave omissão está na ausência da definição de qual é a política de saúde, a qual deveria responder basicamente a duas perguntas. Primeira, em que valores queremos que estejam os indicadores de saúde positiva dos portugueses no fim da legislatura? Segunda, quais são as estratégias para alcançar esses valores? Sem responder a estas duas questões aquilo que mais se pode aproximar de uma política de saúde será o casuísmo. Será predominantemente a resposta à procura. Considerando que esta solução governativa tem o propósito de virar a página das políticas do governo da coligação de direita, é desejável e aconselhável que esta conjunta particularmente favorável seja aproveitada para desfazer um erro que tem atrasado a aplicação de outras medidas de política de saúde. E esse erro é ter-se confundido ao longo destes anos o Serviço Nacional de Saúde com política de saúde. É elementar saber-se que um serviço não é uma política, mesmo sendo nacional, e de saúde. Faz parte dela.
No caso português, uma política de saúde orientada para a resposta às perguntas acima formuladas exige a presença de uma infraestrutura de serviços públicos com os valores do SNS, mas não está limitada a ela. Reduzir a política de saúde ao SNS é navegar num mar de equívocos, que torna impossível a fixação de objectivos de saúde. E essa, sim, tem sido a principal mão oculta da ineficiência sistémica. Daí que as mais diversas organizações internacionais, a começar pela OMS, têm vindo a produzir há já várias dezenas de anos recomendações no sentido de os governos adoptarem políticas de saúde que sublinhem a importância das comunidades locais enquanto campo privilegiado da aplicação de medidas de base populacional. Trata-se de considerar que as acções que visam a promoção da saúde apelam à participação e são inclusivas dos actores locais, organizam-se sob a forma de parcerias orientadas para objectivos concretos e aproveitam todos os recursos da comunidade. Sendo que nestes recursos estão as organizações do SNS. Defender “planos locais de saúde”, como o faz o programa do governo, é bem-vindo mas insuficiente, se não for acompanhado pelo dispositivo organizacional local que o vai aplicar. Esse, sim, seria o golpe de asa que inverteria a pirâmide de comando e controlo que tem sobrevivido até aos dias de hoje.
Entender o SNS como um parceiro local da política de saúde significa criar obrigatoriamente dispositivos intersectoriais que se organizam e dão respostas segundo as necessidades da população, porque são eles que estão em melhores condições para captar a variabilidade geodemográfica, sazonal e temporal dessas necessidades. Nas actuais condições de saúde dos portugueses, a política de saúde deveria considerar três prioridades: (1) a diminuição das desigualdades em saúde, (2) o aumento da esperança de vida sem incapacidade, (3) a melhoria do acesso aos cuidados de saúde. Investir nestas prioridades representa virar a página da tradição e abrir caminho à inovação da política de saúde em Portugal. O pássaro tem quatro anos para que lhe cresçam as asas, levante voo e consiga o tal golpe de asa.
Dirigente da Renovação Comunista