Chamaram-lhe Tudo Língua porque foi assim que começou, em volta do idioma, entre Portugal e Brasil, Minha Língua Minha Pátria, isto apesar de nesta língua haver várias pátrias e de nelas tal língua se desmultiplicar em falares. Mas naquela noite de 4 de Dezembro, na majestosa Biblioteca Joanina de Coimbra, a língua foi sobretudo um pretexto, um elo, para que fluíssem ideias e culturas. E foi ali que Adriana Calcanhotto as cruzou no seu canto, mostrando pontes por entre poemas e canções — tal como antes dela os académicos Carlos Reis e Jerónimo Pizarro haviam guiado os presentes pelos labirintos de Fradique Mendes e Bernardo Soares, geniais criações de Eça e Pessoa. Iniciativa do PÚBLICO em parceria com a Universidade de Coimbra, nos seus longevos 725 anos, Tudo Língua não podia ter encontrado melhor palco: um paraíso de livros (cerca de 60 mil) numa pérola do barroco, conservados (mas disponíveis para consulta, por requisição) por métodos tradicionais, incluindo uma colónia de morcegos que os vão protegendo dos insectos bibliófagos. E foi assim que Adriana — “vigiada” pelo olhar do Rei D. João V (1707-1750), no óleo de Domenico Duprà — ali cantou Vinicius e Jobim, Chico e Caymmi, mas também Pessoa, Camões ou Sá-Carneiro, ligando inteligentemente as palmeiras e o sabiá de Gonçalves Dias (1823-1864) com as do Sabiá de Jobim e Chico, ou trocando as voltas à saudade, misturando a já universal Coimbra (“aprende-se a dizer saudade”) com a canção-chave da bossa-nova (Chega de Saudade, precisamente). Neste jogo, onde o violão e as palavras de Arthur Nestrovski foram parceiros fundamentais, mostrou a Língua a sua versatilidade e os seus enleios, a impor-se na sala gelada e bela, num encontro irrepetível que teve como epílogo uma outra saudade, esta dorida, a de Lupicínio Rodrigues (no site do PÚBLICO, veja-se o vídeo Adriana em Coimbra, o templo da língua).
Mas se Coimbra “é uma lição”, como diz o célebre fado, esta não se esgota na língua, nem na Universidade (da qual Adriana é agora embaixadora oficial). As suas ruas e casas respiram história, ao mesmo tempo que reclamam maiores cuidados. Fosse a baixa coimbrã tão viva e dinâmica quanto é a portuense, seria uma festa. Basta comparar, por exemplo, dois hotéis de charme histórico semelhante, o Grande Hotel do Porto, vizinho do Majestic, e o Astória, fronteiro ao Mondego. Enquanto o primeiro foi alvo de obras há uns anos e hoje se apresenta totalmente recuperado, o segundo está como certas ruas e prédios de Coimbra: necessita de cuidados urgentes. Merece-os pelo seu passado e pelo empenho dos que lá trabalham, e Coimbra merece que isso seja feito porque o Astória guarda muito da sua história, passe o aparente pleonasmo. Digamos, pois, do Astória, que a história o salvará.
No campo da cultura, que aliás foi por onde começámos, há em Coimbra, para lá dos monumentos e museus (e aqui está um exemplo, o da feliz renovação do Machado de Castro), pontos de interesse que vão até à arte contemporânea. E aqui nunca é demais sublinhar o papel do CAV, herdeiro dos saudosos Encontros de Fotografia criados por Albano da Silva Pereira, por onde circulam exposições dignas de nota, a mais recente das quais, Forma Lenta, de Sam Smith, é francamente recomendável (até 14 de Fevereiro, com curadoria de Filipa Oliveira).
Para terminar, ainda com Coimbra mas já noutros horizontes: no ano em que se celebraram 90 anos do nascimento de Carlos Paredes (nascido em 16 de Fevereiro de 1925, em Coimbra) surge agora em livro-disco, numa excelente edição da Boca — Palavras Que Alimentam, o mais recente trabalho da cantora Mariana Abrunheiro, Cantar Paredes. E ela canta-o nas melhores companhias: Carlos Bica, Pedro Carneiro, Ruben Alves, Artur Fernandes, Jon Luz, Jaques Morelenbaum, David Costa, Ana Isabel Dias e o Grupo Coral Estrelas do Sul, de Portel. Isto a par de textos de Miguel Castro Caldas, Adelino Gomes, Gonçalo M. Tavares, Rui Pina Coelho, Domingos Morais, Irene Flunser Pimentel, Daniel Abrunheiro e fotografias de António Coelho, Rodrigo Amado, Eduardo Martins, Duarte Belo, Jordi Burch, João Tabarra, Lara Jacinto, Nuno Ferreira Santos, Roberto Cifarelli e Vitor Garcia. Como não ver neste livro-disco, feito para ser atentamente lido e ouvido, um filho indirecto de Coimbra e dos seus múltiplos encantos?