O fascínio da corneta histórica em aniversário organístico

Chegou ao fim a série de concertos comemorativa dos 250 anos do órgão da Igreja de São Vicente de Fora.

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Concertos celebram os 250 anos do órgão da Igreja de São Vicente de Fora Nuno Ferreira Santos

A série de concertos comemorativa dos 250 anos do órgão da Igreja de São Vicente de Fora, organizada pelo Patriarcado de Lisboa e pela Editora Althum, terminou neste sábado com um concerto especial. Ao organista titular, João Vaz, juntou-se Tiago Simas Freire, intérprete especializado em corneta histórica, instrumento também designado como “corneto” por apropriação do termo italiano “cornetto” cuja presença como solista é ainda pouco frequente na actual vida musical portuguesa, mas que teve considerável disseminação nos séculos XVI e XVII.

Com o título A diminuição na Europa meridional seiscentista, o programa procurava pôr em evidência a estreita ligação entre a corneta e o órgão no Sul da Europa. A corneta histórica (instrumento curvo de secção cónica em geral construído em madeira que não deve ser confundido com os aerofones de metal homónimos presentes nas bandas filarmónicas) era habitualmente usada para duplicar ou substituir a voz superior das obras polifónicas, enquanto o órgão podia duplicar as restantes partes. Os cornetistas enriqueciam essas linhas melódicas com ornamentações e variações (designadas por “diminuições” pois implicavam o uso de valores rítmicos mais curtos e figurações mais ágeis), tornando-as assim mais exuberantes. Um exemplo emblemático dessa prática presente no programa foi o do motete Circundederunt me, de Bartolomeu Trosilho, para o qual o próprio Tiago Simas Freire concebeu com destreza e acuidade estilística uma apelativa versão ornamentada da voz superior.

Por seu turno, o registo de “corneta” era muito comum nos órgãos do Sul da Europa e o imponente instrumento de São Vicente de Fora, construído em 1765 pelo organeiro galego João Fontanes de Maqueira e considerado um dos mais significativos a nível europeu, não é excepção. Assim, uma peça puramente organística como o Meio Registo de 2º Tom, de Frei Diogo da Conceição, inclui nitidamente a imitação de um solo de corneto. Esta obra e a sempre espectacular Batalha do 5º Tom do mesmo compositor constituíram momentos altos das prestações a solo de João Vaz, bem representativas da exuberância de colorido do órgão ibérico. A solenidade da Toccata per l’elevatione de Frescobaldi e a energia rítmica do Balletto de Bernardo Storace mostraram outras faces do repertório desta época e da versatilidade do intérprete.

Num tratado de 1584, Girolamo della Casa dizia que “entre os instrumentos de sopro a corneta era o mais excelente por imitar a voz humana”. O fascínio por este instrumento, de exigente execução, emerge também das palavras do teórico Marin Mersenne quando o compara a “um raio de sol perfurando as sombras”. A dimensão “vocal” da sonoridade, as possibilidades no domínio do “cantabile” e da expressividade ao nível das nuances dinâmicas ficaram bem patentes na belíssima interpretação de Simas Freire de La suave melodia & su corrente, de Andrea Falconiero, contando com a estreita cumplicidade de João Vaz. Se no início do concerto, na Canzon La Spiritata, de G. Gabrelli, o duo se mostrou ainda um pouco a apalpar terreno e a adaptar-se à acústica reverberante da igreja, o desempenho foi evoluindo num crescendo de eficaz sintonia. A parte final do programa foi dedicada às danças renascentistas: Correnta, Brando e Gagliarda de Salomone Rossi, e Pavane, Gaillarde, Bransle de Bourggne e Tourdion de Claude Gervais. Uma selecção criteriosa em função da alternância de contrastes rítmicos (binário e ternário) e de carácter, que pôs em paralelo o estilo italiano e o estilo francês, enriquecida pelas eloquentes intervenções da corneta.

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