Os dias caem no calendário de 2015 e a angústia cresce. Dia 31 de Dezembro, fim da linha. Dia 1 de Janeiro, uma incógnita. Tatiana Moutinho e Inês Barbosa já não conseguem abstrair-se: as bolsas de pós-doutoramento e doutoramento de ambas estão a terminar e para lá disso não há nada — perspectivas de nova bolsa, outro trabalho assegurado, subsídio de desemprego. Nada. Tatiana já decidiu: porá um ponto final em duas décadas de dedicação à ciência, saturada de uma luta da qual sai como se nada tivesse feito porque para o sistema português a investigação não conta como trabalho. Inês admite continuar — mas também mudar de rumo. Tem contas para pagar e uma filha para sustentar. Fará o que tiver de ser feito. Neste fim-de-semana, estiveram na terceira edição do Fórum Precariedade e Desemprego, no Porto, onde se estruturaram ideias para uma “campanha” que estará nas ruas e online a partir de Janeiro. Bolseiros, estagiários, falsos recibos verdes e falsos voluntários, contratados a termo, vítimas de trabalho especulativo: como se diz não ao abuso, ao trabalho gratuito, à hélice do capital?
As perguntas surgem à dimensão do problema, em catadupa. A precariedade não é um obstáculo estanque numa área de conhecimento, zona geográfica ou condição social, não é exclusiva de um género nem geração. Sobre isto há menos dúvidas do que sobre o resto. E essa é uma boa achega para definir a condição inicial para o combate: a união entre todos, porque todos podem ser apanhados na teia. “A chantagem é imensa, o poder do capitalismo neoliberal é gigante, avassalador e permanente. Só é possível combater isto havendo união”, verbaliza Inês Barbosa, activista em vias de terminar um doutoramento em Sociologia da Educação.
Fala-se de trabalho “à borla” numa das conversas deste fórum organizado pela associação de combate à precariedade Precários Inflexíveis. É um saco onde cabem mais coisas do que se pensa. Francisco Fernandes Ferreira conhece a realidade de trás para a frente: há quase três anos, criou a plataforma Ganhem Vergonha onde recebeu milhares de denúncias de anúncios de emprego ilegal e de “empregadores sem vergonha” e em 2016 vai estampar os casos num livro. Para ele, há uma desconstrução importante a fazer desde já: “A narrativa que banalizou o trabalho não pago. É preciso contrariar a ideia de que é aceitável.”
Não é aceitável a obrigatoriedade dos estágios curriculares não remunerados ou a eternização desta modalidade, não é aceitável utilizar o voluntariado para preencher postos de trabalho, não é aceitável recorrer ao trabalho especulativo para obter mão de obra barata — ou gratuita. É como um mantra que Francisco e outros activistas repetem na tentativa de consciencializar. Exemplos reais do que acontece e não pode continuar: um jovem licenciado trabalha numa loja de roupa à noite para poder pagar os custos associados a um estágio curricular (obrigatório) numa empresa de comunicação social, os 400 voluntários utilizados pelo Rock in Rio para cumprirem tarefas imprescindíveis, o Festival de Cinema da Madeira onde tudo foi feito por voluntários, o “concurso” aberto pela Câmara Municipal de Vila do Conde para pensar todo o design do site da autarquia (e que em troca dava ao vencedor um estágio) ou mesmo anúncios do Governo, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a promover estágios nas cidades mais ricas do mundo sem dar qualquer apoio ao estagiário.
Os casos são muitos. E aumentam a cada conversa: todos conhecem alguém a passar por uma situação de abuso ou estão eles próprios enredados na cerca. Antes de embarcar no doutoramento, Inês Barbosa, 32 anos, viveu a precariedade em várias modalidades. Durante cinco anos foi professora do ensino básico, sempre com contratos de curta duração em escolas TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) e nas chamadas AEC, Actividades de Enriquecimento Curricular. Vivia graças a pequenos balões de oxigénio. Um dia, partiu um pé durante uma aula de teatro e foi para casa um mês sem direito a nada. Era falso recibo verde numa escola pública.
O abandono à sorte é um guião permanente nos vinte anos de trabalho de Tatiana Moutinho, 43 de vida. Quando terminou a licenciatura em Bioquímica, em 95, teve a primeira experiência num laboratório de investigação. Seis meses de estágio não remunerado no fim dos quais surgiu um convite: queriam que continuasse. Mas sem remuneração. “Como sempre gostei imenso e estava a começar e a aprender achei a proposta muito honesta. Durante dois anos continuei alegremente a pensar que estavam a fazer-me um favor ao permitir que trabalhasse num laboratório e desenvolvesse competências”, contou ao P3.
O trabalho "à borla" e a "roda das bolsas"
Os empregadores, admite Tatiana, nem tiveram de convencê-la. Estava impregnada na forma de funcionamento da instituição, no próprio sistema de ensino e na sociedade a ideia de que tinha de ser assim. “Só anos mais tarde uma pessoa começa a perceber que de facto está a aprender, mas está também a desenvolver trabalho e a produzir conhecimento científico passível de ser publicado. Portanto, não será propriamente legítimo estar a trabalhar sem ganhar.” Aos dois anos “à borla” seguiu-se “a roda das bolsas”: um mestrado, um doutoramento, um pós-doutoramento de seis anos e outro de dois. Quando olha para trás, a menos de um mês de ficar novamente sem nada, Tatiana não se arrepende. Mas guarda uma mágoa que pesa toneladas: ter dedicado toda a vida adulta à ciência e, “para todos os efeitos, nunca ter trabalhado na vida.” “Entrando agora para o mercado, vou trabalhar até morrer.”
Cansaço. É talvez a palavra que melhor lhe define o estado de espírito. Cansaço de lutar para se manter à tona sabendo que no segundo em que parar de remar vai ao fundo. “Não quero mais isto, não vou continuar a fazer ciência. Sem um contrato de trabalho não consigo mais.” A transformação de bolsas em verdadeiros contratos de trabalho é uma velha reivindicação dos Precários Inflexíveis e da Associação de Bolseiros de Investigação Científica. E neste “tempo novo”, diz Tatiana, isso talvez possa acontecer: “Estou esperançosa. Não será para mim, mas que seja para os outros.”
Na associação de combate à precariedade assinala-se esse começo de “um novo ciclo”. Não só há um corte com o “massacre feito aos direitos de trabalho” na última legislatura como, “pela primeira vez, existe um governo com um programa — e não só eleitoral — disposto a fazer alterações de fundo a nível de recibos verdes e contratação a prazo”, avalia Adriano Campos, dos Precários Inflexíveis.
Em breve, a associação fará chegar ao executivo de António Costa as conclusões deste fórum, onde participaram os deputados presentes na Comissão de Trabalho, Tiago Barbosa Ribeiro (PS) e José Soeiro (BE). Prioridades absolutas: operacionalizar e actualizar a lei contra os falsos recibos verdes, dar mais poder à Autoridade para as Condições de Trabalho e resolver as questões das dívidas à Segurança Social de vários trabalhadores a recibos. Mas também combater os Contratos Emprego-Inserção, que “abrangem mais de 70 mil pessoas em Portugal, desempregados a receber um valor baixíssimo para fazer trabalho a tempo inteiro em escolas e outras instituições”, e caminhar para o fim do trabalho temporário, empregador de “mais de 400 mil pessoas e um oásis à margem da lei de trabalho”.
A partir de Janeiro, uma campanha junto da população, instituições e governo vai assegurar-se do não esquecimento dos precários, uma massa crescente no país. Acções didácticas, distribuição de panfletos, afixação de cartazes, presença online — “vamos fazer muita coisa”, diz Adriano Campos sem querer levantar demasiado o véu. “Este é o momento para um pacto pelo fim da precariedade.”