Javier Marías contra a literatura pueril - e contra Mourinho
Critica a pretensão independentista da Catalunha e diz que Mourinho foi o pior que podia ter acontecido ao Real Madrid. Em contrapartida, gosta de Lobo Antunes e tem da literatura uma ideia de nobreza. O seu último romance foi publicado em português. Javier Marías é um dos grandes de Espanha.
Admirado por muitos dos seus pares, tais como Coetzee, Rushdie, Sebald e Bolaño, Javier Marías (Madrid, 1951) é também, coisa rara, um escritor que conseguiu obter os elogios da crítica e os favores do público. Especialmente a partir da publicação de Todas as Almas (1989), Coração Tão Branco (1992) e Amanhã na Batalha Pensa em Mim (1994). Um dos escritores espanhóis contemporâneos mais traduzidos (ele próprio tendo sido um reputadíssimo tradutor de Sterne, Faulkner e Nabokov, entre outros), a sua obra – que conta doze romances e uma vintena de livros de contos, de ensaios e de recolhas de artigos de imprensa – soma cerca de seis milhões de exemplares vendidos em todo o mundo.
Publicado no ano passado em Espanha, Assim Começa o Mal é o romance mais recente. É um livro denso, que rivaliza em extensão (mais de quinhentas páginas) com O Teu Rosto Amanhã, a trilogia da qual foi apenas publicado em português o primeiro volume. Inexplicavelmente. A tradução portuguesa de Assim Começa o Mal chegou agora às livrarias. Entrevistámos o autor, por escrito e através de correio electrónico. Não obstante tais limitações, fala-se de literatura na entrevista, mas também de futebol e de política, da Catalunha e de Mourinho.
Uma vez mais, encontrou em Shakespeare o título para um livro seu. O que é que torna Shakespeare tão inspirador para si?
É um escritor que releio com frequência. Ao contrário do que muitos dos meus colegas costumam fazer. Os grandes clássicos costumam ler-se quando se é jovem, e depois procuramos não os revisitar muito, porque podem deprimir e dissuadir. "Que poderei eu escrever", podemos perguntar-nos, "quando já existe isto?" No entanto, para mim, Shakespeare é fecundante e estimula-me a escrever. Sem pretender comparar-me ou rivalizar com ele, é claro, isso seria ridículo. Mas é um autor tão misterioso, com tantas frases ambíguas (a do meu título também o é), com tantas coisas que aponta mas não investiga, tão cheio de sugestões, que nos convida a adentramo-nos por caminhos que ele não explorou, mas que sugeriu. Há que saber ver esses avisos, é claro, e nem toda a gente é capaz. Mas eles estão lá. Se a isto acrescentarmos que frequentá-lo é pormo-nos em contacto imediato com uma literatura de tom elevado, que mais se pode pedir?
Por outro lado, se olhar à sua volta, verá que a influência dele está por toda a parte, talvez hoje mais no cinema e nas séries de televisão do que na literatura. Desde O Padrinho até A Guerra dos Tronos (e entre essas obras há uma distância de quarenta anos), em todas há ecos de Shakespeare. É sem dúvida o clássico que melhor sobrevive através dos tempos.
Escreve a partir do título?
Não, muito pelo contrário. Normalmente, termino um romance sem que tenha encontrado o título. São muito poucas as vezes em que decidi este antes de terminar. No caso deste romance, uma vez acabado, considerei outras possibilidades, como Las Lunas (muito sóbrio, quase insípido), por exemplo. Suponho que isto me acontece, em parte, porque só depois de ter chegado ao fim compreendo inteiramente (se é que “inteiramente” é aceitável, e eu creio que não) o que escrevi.
Por que é que escolheu a Madrid da “movida” para situar a acção deste livro?
A resposta a isso encontra-se, em parte, na primeira página, quando o narrador afirma que aquela história não poderia ocorrer hoje. Em Espanha, não houve divórcio até 1981, e a acção decorre em 1980. O facto de não haver divórcio (embora as pessoas se separassem) condicionou a vida de inúmeros casais, que sabiam que não podiam refazer plenamente a sua vida por causa dessa proibição. Isso levava-os a continuarem juntos em muitos casos, apesar de desejarem separar-se. Não necessariamente por necessidade ou por interesse. Em parte, também por inércia. Esta história pertence a uma determinada época, que eu aliás conheci bem. Faz parte da minha vida, e uma pessoa procura compreender o mundo em que vive, na infância, na juventude, quando adulto e suponho que também na velhice. Agora calhou a vez à minha juventude, e, um pouco, à minha infância.
Tal como acontece em outros romances seus, surgem personagens reais: o filósofo Fernando Savater, o filólogo Francisco Rico, etc. Trata-se apenas de uma homenagem pessoal?
Savater é apenas mencionado, mas sim, é uma piscadela de olho, uma homenagem. Rico é outra questão. Apareceu em muitos romances meus, sob o seu nome ou com outros (no princípio). Acho-o divertido e atraente como personagem, sempre lhe encontrei potencialidades. E quando o introduzo num romance, ao lado de outras personagens inteiramente fictícias, o verdadeiro Professor Rico deixa de ser ele e torna-se uma figuração… baseada nele, sem dúvida, mas fabulando-o. Quando introduzimos algo real numa ficção, isso acaba sendo tão fictício como o restante, tal é a força persuasiva do género romance.
O pintor catalão acusado de ser vira-casacas é Tàpies?
Isso teria de perguntar a quem fala desse pintor catalão no romance, o doutor José Manuel Vidal. Como quer você que eu saiba a quem se refere uma personagem num diálogo?
A propósito: o que é que pensa do desejo de independência da Catalunha?
A sua pergunta não está bem formulada: na Catalunha há uma parte da população que quer tornar-se independente, e outra não. Parece que a parte que não quer é notavelmente mais numerosa, mas uma série de políticos cínicos ignoraram isso e puseram em marcha um “processo de separação” sem levarem em conta a vontade dos cidadãos. Está a ocorrer um sequestro de todo o território por parte de uma minoria decidida e que não respeita as regras democráticas, nem sequer a aritmética. Parece-me lícito que haja quem seja independentista, obviamente. O que me parece ilícito é que sobreponham os seus objectivos aos desejos dos cidadãos. E parece-me grave que comecem a considerar “traidores”, ou “maus catalães”, aqueles que não compartilham as suas aspirações nem, sobretudo, os seus métodos antidemocráticos e os seus falseamentos da história. Você acredita que um povo possa ser “oprimido” ou “subjugado” durante quinhentos anos? Se assim fosse, seria um povo muito cobarde. A Catalunha não foi subjugada, ou não o foi mais do que o resto de Espanha quando todos padecemos ditaduras ou absolutismos. E os actuais líderes independentistas é que estão em vias de se converterem em “absolutistas”.
A determinada altura, no romance, Muriel renuncia a saber o que é que Van Vechten fez durante o franquismo. Aconteceu o mesmo com a sociedade espanhola? A memória acabou sendo denegada em nome da paz social e política?
Sim, em grande medida. Houve uma amnistia oficial, decidiu-se não denunciar nem os crimes remotos da Guerra Civil nem os mais recentes do franquismo. Provavelmente foi uma atitude prudente, que permitiu que o país avançasse e que não houvesse quase derramamento de sangue, embora tenha implicado algumas renúncias. (Nem outra coisa se poderia ter feito, na realidade, porque, como se recorda no romance, em 1976 os únicos que tinham armas em Espanha eram os militares, e estes continuavam a ser franquistas na sua maior parte.) O problema, se admitirmos que a decisão ou a aceitação disso foi sábia, é que nem sequer se relatou o que cada um havia feito. Isso foi aproveitado por muitos colaboradores do regime franquista para inventarem biografias democráticas ou inclusive antifranquistas, e para que se não soubesse quem era quem. Foi algo muito irritante, e muito ofensivo para aqueles que realmente tinham passado por dificuldades durante a ditadura. Mas repare que a própria esquerda de então não queria que viesse à luz do dia o passado de alguns daqueles que agora eram “seus”. Eu tive problemas, com a direita – obviamente –, mas também com a esquerda, quando escrevi alguns artigos de imprensa falando um pouco disso, nos anos 90. Do silêncio e da “ficção” sobre o passado ditatorial foram tão culpáveis a direita como a esquerda. A certa altura ninguém queria saber.
Muriel é um homem que “perdeu” uma parte da sua vida por ter acabado por saber de mais. A verdade nem sempre liberta. É uma conclusão esmagadora, não é?
Claro que a verdade nem sempre liberta, nem sempre é positiva. Para renunciar a saber algo há que ter muito valor, do meu ponto de vista, e muita frieza, porque a tendência de todos é averiguar, sobretudo se tivermos a sensação de que algo nos escapa. E no entanto há muitas ocasiões em que preferiríamos “não ter sabido”. Muriel diz algo muito claro: quando um engano dura muito, até ao ponto de condicionar uma vida, o pior que se pode fazer é aclarar esse engano, porque aquilo que se viveu – enganado – já não se pode apagar, e de repente já não se sabe o que fazer com isso. Não podemos aceitá-lo mas também não o podemos cancelar. Quando um engano é irremediável, ou irremediáveis tenham sido as suas consequências, talvez seja mais saudável mantê-lo. Se o engano é recente e vamos a tempo de rectificá-lo, então não, é claro. Muriel vivera enganado doze anos, ou algo assim. Demasiado. Não se podem anular doze anos. Não se pode renunciar ao que se viveu, não se pode deixar tudo numa espécie de limbo, sem sabermos se o vivemos ou não. Creio eu.
Além disso, o tom geral do livro é pessimista. Não há justiça, há “vingança retrospectiva”…
Não sei se é pessimista. Não é pueril, como a maior parte da literatura que hoje se escreve. Tenta mostrar as coisas como eu creio que costumam ser. Estamos todos de acordo em que a justiça é frequentemente a forma civilizada da vingança. Uma vingança com garantias, com árbitros, que pode resultar bem ou mal para o vingador. Mas a maior parte das denúncias que se apresentam têm origem no dano que o demandante sofreu, e se não ele pessoalmente, alguém da sua família, ou da sua ideologia, ou da sua classe social: os seus “pares”. Há quase sempre esse elemento, o da vingança, por detrás de qualquer pleito ou querela. Por isso, o que Muriel diz é que não há justiça “desinteressada e impessoal”. Há sempre um elemento de interesse pessoal. Excepto para os justiceiros profissionais, é claro, normalmente gente exibicionista e fanática que o que quer é ser admirada e “ficar bem vista” perante o seu público.
O romance termina de maneira melodramática e deixa aberta a possibilidade de o casamento do narrador com Susana poder repetir o de Muriel e Beatriz. O engano regressa sempre?
Melodramática? Bem, se Shakespeare e Conrad e Faulkner e Flaubert forem melodramáticos, então sim. O que o final assinala é que o risco de falar demasiado, de contar o que seria melhor que permanecesse calado, existe sempre. Num arroubo de ira (para causar dano) ou de sinceridade (para aliviar momentaneamente a própria consciência), por vezes não conseguimos morder a língua e metemos a pata na poça, e estragamos algo que pode não ter sido ideal, mas pode ser aceitável ou conveniente, e convertemo-lo num desastre ou num inferno. Quantas vezes não lamentamos termos dito ou contado algo? Não sei se também se diz em português, mas em espanhol dizemos: “Quem me mandou abrir a boca?” Perdemos muito mais por causa do que dizemos do que por causa do que fazemos; dessa ideia trata, em boa medida, o meu longo romance O Teu Rosto Amanhã que, se não me engano, não se pode ler por inteiro em português. Talvez só o primeiro volume? Não me recordo bem.
O que é que o fascina mais na narração na primeira pessoa?
Tem inconvenientes e vantagens. O inconveniente principal é que o narrador tem de justificar o que sabe e conta, não pode introduzir-se no quarto de alguém e contar o que aí se passa, ou o que pensam as personagens. A vantagem principal é que uma voz na primeira pessoa resulta mais credível, mais persuasiva, e, por ser mais fragmentária, parece-se mais com o que todos sentimos ao longo da vida, com o modo como vemos a realidade. Sempre incompleta e fragmentária, sempre com um olhar zarolho, quase sempre sem certezas. Talvez para um leitor contemporâneo resulte mais verosímil este tipo de voz. No que estou agora a escrever, no entanto, tentei recuperar a terceira pessoa, pelo menos parcialmente. A última vez que a utilizei foi em 1983, num romance, El Siglo, que tem, a propósito, um capítulo intitulado Lisboa. Também não foi publicado em português.
O narrador lembra um pouco certas personagens picarescas. Concorda?
Do meu ponto de vista, não. Curiosa observação. É, simplesmente, um jovem quando decorre a acção, e, como ele próprio diz já mais velho, “os jovens têm a alma e a consciência adiadas”, são coisas que se lhes desenvolvem mais tarde.
Juan de Vere (o narrador) também descobre muitas coisas na Internet. É uma ironia?
Não sei se são muitas. Eu não utilizo computador para escrever, mas sei manejar a Internet e pesquisar dados.
Por que é que continua a não utilizar computador para escrever?
Porque gosto de escrever sobre o papel. Pegar na página escrita e corrigi-la à mão, e voltar a teclá-la. De cada vez que a refaço por completo acostumo-me a ela, vou-a assimilando, vou-a “aprovando”. Às vezes teclo a mesma página, com as suas mudanças e correcções, quatro ou cinco vezes, as que forem necessárias. E ela vai-se tornando “minha” cada vez mais. O primeiro texto é um pouco incerto, o quinto é um texto no qual eu já sei por que é que cada palavra é aquela e não outra. Tudo isso é menos visível e palpável no computador.
Há algum autor português de quem goste particularmente?
Dos contemporâneos, António Lobos Antunes parece-me um grande escritor. Não conheço muito mais do que se faz agora. O meu tempo de “andar em dia” já passou. Tentei durante décadas, e perde-se demasiado tempo: encontra-se um texto que vale a pena em vinte, e há clássicos que ainda não li ou que gostaria de reler. Aplico isto a todas as línguas. De entre os mais clássicos, gosto muito de Agustina Bessa Luís e obviamente de Eça de Queiroz. De Cardoso Pires e, entre os poetas, de Sá Carneiro, e Pessoa, a sua poesia mais do que a sua prosa.
Já começou a escrever o seu próximo romance?
Sim, como já disse. Mas ainda não sei bem de que trata, nem se o terminarei. Nunca sei, enquanto os escrevo. Nem uma coisa nem outra.
Mudando de assunto, o que é que prefere: o cinema ou o futebol?
Há uns anos teria sido difícil responder. Agora, o futebol anda mal, deram cabo dele, os mesmos jogos repetem-se todos os anos, já nenhum é um “acontecimento”. É claro que o cinema também se corrompeu, mas podemos voltar ver as velhas obras-primas, e há algumas séries de televisão que ocuparam dignamente o seu lugar. O futebol, ai de mim!, agora “vejo-o” quase sempre enquanto faço outra coisa, e sem emoção.
Creio que não gostou da passagem de Mourinho pelo Real Madrid. O que pensa da presente temporada do Chelsea?
Não, não gostei. Mourinho foi o pior que aconteceu ao Real Madrid em toda a sua história. Não só por ser uma personagem venenosa e contrária ao espírito tradicional do clube, mas também por ser péssimo treinador. Tenho a impressão de que este ano, no Chelsea, os jogadores estão a perder de propósito para se livrarem dele. É uma impressão, não tenho evidentemente nenhuma prova. Mas compreendê-los-ia bem. Nenhum jogador consegue suportar durante muito tempo um treinador que se apropria em exclusivo dos êxitos e nos fracassos culpa os futebolistas, ou os árbitros, ou o calendário, ou a influência da lua…
Crê que o pior já passou? E agora não estou a falar de futebol, obviamente…
Bem, ao traduzirem o meu romance para outras línguas, muitos tradutores foram ver como se havia traduzido essa frase de Hamlet nas suas respectivas línguas, e descobri que muitos tradutores a interpretaram precisamente ao contrário do modo como a entendem as personagens do meu romance. “Thus bad begins and worse remains behind” pode ser “… e o pior já passou” ou então “… e o pior vem atrás”, ou seja, “… ainda está para vir”. No meu romance há que entendê-lo da primeira maneira. Mas repare que inclusivamente na citação de Shakespeare é difícil saber se o pior já passou.