Portugal e Timor, a distância da memória
Hoje, a ilha é um ermo na memória colectiva que nenhum parece ter interesse em revisitar.
Timor-Leste prepara mais uma celebração do seu dia nacional, isto é, a proclamação da independência a 28 de Novembro de 1975. Aparentemente, a evocação da data deveria limitar-se à contabilização dos 40 anos e à inevitável reflexão em torno de uma descolonização incompleta, uma invasão estrangeira e uma independência reconquistada após um terrível período de ocupação. Porém, no dia 28 os timorenses não vão apenas celebrar quatro décadas. Irão também comemorar cinco séculos, 500 anos da chegada dos portugueses à ilha; eles, os timorenses, porque nós, os portugueses, ignoramos o evento, não sabemos e não queremos saber. Seria, aliás, interessante descobrir que Timor nos estará hoje mais distante: se no espaço, se no tempo; se a ilha, se a memória de um encontro e de um passado em comum.
Poderíamos ser levados a pensar que se trata de uma simples evocação de uma data remota ou, talvez, de um gesto diplomático para agradar a Portugal. Não o é, pelo contrário. Está em curso, desde 1 de Outubro, um amplo programa de actividades culturais, desportivas e religiosas destinadas a evocar os 500 anos, envolvendo municípios, associações e escolas. As celebrações decorrem em vários pontos da ilha, com relevo para Dili e Lifau, e culminarão com cerimónias oficiais com a participação das mais altas figuras do estado timorense. E Portugal? Por lá, pouco, uma vez que se desconhece qualquer participação oficial para além da embaixada em Díli. A única entidade portuguesa envolvida é, aparentemente, a Fundação Mário Soares, em articulação com o Museu da Resistência Timorense. Por cá? Menos ainda, um silêncio total. Para um país que há duas décadas comemorava oficialmente as viagens marítimas e os “Descobrimentos” com pompa e circunstância, parece muito pouco. Ou talvez não. Na verdade, a História – e a da “época dos Descobrimentos” em particular - nunca mereceu muito mais do que alguma curiosidade imbuída de orgulho mais ou menos nacionalista e nunca foi fórum de reflexão acerca do passado colectivo ou de robustecimento da memória e da identidade. Portugal é um país amnésico. O nosso olhar actual – nosso, não o dos turistas que visitam e fotografam o Padrão dos Descobrimentos – sobre a época limita-se ao World of Discoveries e ao Museu de Cera dos Descobrimentos. Não é preciso adiantar muito mais.
Os portugueses chegaram a Timor há 500 anos. A data de 1515 é tradicionalmente aceite por todos, embora seja apenas presumida, uma vez que carece de prova documental. Não se conhece o nome dos homens, mas as circunstâncias que os levaram lá deduzem-se facilmente: a ilha era conhecida e frequentada por mercadores malaios, chineses, guzerates ou javaneses que ali aportavam para carregar sândalo, a madeira aromática de grande valor com uso farmacêutico e religioso, tanto na Ásia como na Europa. Os portugueses, recém-estabelecidos em Malaca, apressaram-se a explorar o potencial económico do arquipélago malaio-indonésio ao seu alcance e Timor era um dos alvos a atingir. Só no século seguinte, porém, foram fundados os primeiros estabelecimentos permanentes, primeiro em Kupang e depois em Lifau. Às cargas de sândalo juntou-se o trabalho dos frades dominicanos e a fundação das primeiras missões católicas. O primeiro governador chegou no início do século XVIII e a capital foi mais tarde transferida para Díli. Nos meados do século XIX, a ilha foi formalmente dividida entre Portugal e a Holanda. Contudo, só nos finais desse século puderam as autoridades portuguesas dar início a um domínio colonial propriamente dito; até essa data, o poder dos governadores era reduzido e limitado à capital e arredores.
Temos, portanto, meio milénio de passado comum feito de comércio, contacto e partilha e também de violência, domínio e revolta. Mas o primeiro contacto, o tal anónimo e ainda impossível de confirmar com segurança, foi certamente pacífico. Não deixa de ser profundamente irónico que a ex-potência colonizadora, que se envergonha do seu passado colonial mas que diz orgulhar-se das suas viagens marítimas, o tenha esquecido, e que seja o povo ex-colonizado quem hoje o celebra de forma oficial porque reconhece que a sua identidade, a marca distintiva que lhe permite assumir o seu lugar no seio das nações, foi forjada ao longo desses 500 anos. E que considera que a efeméride merece ser festejada colectivamente e em simultâneo com os 40 anos da proclamação da sua própria independência. Já para os portugueses, os mesmos que foram solidários com o sofrimento dos timorenses ao longo de duas décadas e que se emocionaram com os acontecimentos de 1999, a História – a sua, a alheia e a partilhada – é algo nebuloso, a memória é uma coisa efémera e fugaz. A distância que nos separa de Timor, tanto a geográfica como a da memória, permanece imensa: há 50, há 100 anos, a ilha era uma paragem remota do Império, um local de desterro para onde nenhum português queria ir. Hoje é um ermo na memória colectiva que nenhum parece ter interesse em revisitar.
Historiador