Da livraria para a barra dos tribunais
Os activistas apanhados em flagrante a ler uma adaptação de Gene Sharp vão a julgamento
Deve começar nesta segunda-feira, na 14.ª secção do Tribunal Provincial de Luanda, o julgamento de 17 jovens activistas angolanos: 15 estão em prisão preventiva desde 20 de Junho, e dois outros aguardavam o julgamento em liberdade. A agência Lusa não dava como certo o arranque do julgamento para esta segunda, já que os quatro advogados que defendem os arguidos supostamente vão iniciar o julgamento sem terem tido acesso ao processo.
Esta não é de todo a coisa mais bizarra neste processo. Os 15 que agora vão a julgamento foram apanhados em “flagrante delito” no dia 20 de Junho, quando se encontravam na Livraria Kiazele a ler e a discutir uma adaptação da obra Da Ditadura à Democracia, do norte-americano Gene Sharp. É um livro que a CNN apelidou de “panfleto viral” e que muitos dizem ter inspirado movimentos e revoluções como as primaveras árabes. Aliás, o Ministério Público faz ele próprio uma espécie de recensão do livro para justificar a acusação.
Algemados, foram levados para a prisão, sendo que lá ficaram mais do que o prazo de três meses de prisão preventiva previstos para os crimes de que são acusados. E que crimes são esses? Co-autoria material de um crime de actos preparatórios para uma rebelião e para um atentado contra o Presidente de Angola.
E quais são as provas que justificam tão grave acusação? O PÚBLICO revela hoje parte do despacho de pronúncia do Tribunal Provincial de Luanda que dá credibilidade a uma prova apresentada pela acusação que é, no mínimo, esquisita. Diz que os activistas discutiram no Facebook a formação de um alegado governo de salvação nacional e a composição de outros órgãos de soberania, sendo que Luaty Beirão seria o procurador-geral. Na dita conspiração feita na rede social, à vista de todos, o lugar de Eduardo dos Santos seria ocupado pelo líder de um grupo milenarista dissidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que ainda há dias anunciava que o fim do mundo deveria acontecer ainda este ano.
A aceitação disto como prova é descabido e qualquer sentença que daí possa resultar, a não ser que seja a absolvição, será absurda. Os olhos do mundo vão estar colocados nos próximos dias em Angola para saber como é que o regime lida com o exercício de direitos como liberdade de expressão, e se há uma efectiva separação entre o poder judicial e executivo. Não será difícil tomar uma decisão, já que alguns, como Luaty Beirão, que se tornou conhecido internacionalmente por uma greve de fome de 36 dias que desencadeou uma onda de solidariedade, até já confessaram publicamente aquilo que alguns no regime angolano olham como um crime; na entrevista que deu ao PÚBLICO em Março deste ano, o rapper luso-angolano confessava: “Sou persona non grata porque tomei uma posição inequívoca contra o estado actual de coisas e citei nomes.”