Do avesso para o direito, da palavra para o silêncio

A nova exposição de Ana Jotta confirma a extraordinária originalidade da sua obra

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Um trabalho pessoal sobre a forma que a obra adquire na apropriação das imagens disponíveis no mundo DR
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É preciso saber que Ana Jotta possui um arquivo permanentemente aberto de imagens, papéis, embalagens e, em geral, aquilo a que ela chama o seu “lixinho”, que funciona como suporte, apoio, inspiração e materialização do trabalho plástico que vai desenvolvendo de exposição em exposição, de série em série, de disciplina artística em disciplina artística. É preciso sabê-lo, por isso, para não nos surpreendermos quando nos contam que esta exposição partiu da observação dos desenhos intricados resultantes da costura de missangas em cartões mostruário. A terceira casa à esquerda, o nome que deu a esta sua mais recente exposição individual, concretiza de forma evidente a associação entre as formas desenhadas involuntariamente pelo desconhecido operário que terá pregado as contas à cartolina de suporte, tentando, como é habitual nestes casos, que a economia de gestos que o levou a utilizar talvez uma única linha para esta tarefa não fosse percebida por quem observasse o trabalho do direito. Ana Jotta interessou-lhe esse lado escondido do trabalho que, por força de razões, não é valorizado plasticamente, e operou uma transformação do mesmo como se se passasse uma página de livro: virou-a, observou-a, transformou-a em obra artística.

Mas a exposição não consta apenas desta série de obras que trabalham a linha observada, transformando-a em caminho, casa, rua, e isto sempre sobre tela não esticada, pendurada na parede de um modo que parece contrariar as regras habituais da exposição da pintura – como de resto já se adivinhava noutras exposições suas em que se servia de écrãs portáteis como suporte para imagem estática bidimensional. Mesmo à entrada da galeria, um filme projectado sobre a parede mostra a artista a ler, sem banda sonora, um documento escrito. Saberemos mais tarde que se trata de um excerto do livro de Flann O’Brian, O terceiro polícia. O trecho em questão, que é distribuído como folha de sala, fala de estradas que serão os “mais antigos monumentos humanos”, de cidades “complicadas”, de outras estradas que nos tiram do emaranhado da “cidade retorcida” de ruas tortas e outras imagens visuais, delirantes e fantásticas, que tanto recordam Lewis Carroll como a escrita automática surrealista.

Contudo, desta leitura, reter-se-á o silêncio a que Ana Jotta nos convida: silêncio da sua voz, aqui inaudível, e da nossa mente, que lerá sempre a folha de sala de boca fechada. Dito de outra forma, aqui também haverá essa espécie de virar da página que já estava na origem das pinturas. Enquanto que aí se tratava de partir para a criação artística com base no que não é suposto ser visto, aqui trata-se de remeter o entendimento do livro, e a compreensão da palavra falada mesmo quando ela é a palavra exuberante, fantasiosa e excessiva de Flann O’Brian, para o mundo do silêncio.

Como sempre sucede na criação artística, as associações são quase inevitáveis. E vem-nos à memória um livro de artista de Lourdes Castro, recentemente exposto, onde esta artista também depurava, sobre plexiglas, o desenho formado no avesso de mostruários de botões. Mas, ao passo que aqui o que se tratava (como sempre em Lourdes Castro) de um caminho pessoal na direcção da imaterialidade, em Ana Jotta esse mesmo caminho pessoal trabalha a forma, os seus significados e a questão da linguagem na definição da obra de arte. Mesmo sabendo que Jotta já afirmou em tempos que aquilo que faz, outros já o fizeram antes, trata-se aqui de um trabalho pessoalíssimo, que não procura a efemeridade total de Lourdes Castro, mas, uma e outra vez, a forma que a obra adquire na apropriação das imagens disponíveis no mundo, em todos os mundos que Ana Jotta vai recolhendo e coleccionando, como fez aqui com os mostruários de continhas de colar.

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