"A guerra é o melhor negócio de sempre. Nunca acaba"
Milhões de vidas se perderam nos 250 campos de batalha que Yan Morvan fotografou e compilou no livro “Champs de Bataille”. Onze anos de trabalho do fotógrafo servem de ponto de partida para a reflexão sobre a utilidade ou absurdo da guerra
No simbólico dia da assinatura do tratado de paz da Primeira Guerra Mundial, o dia 11 de Novembro, é lançado o livro fotográfico “Champs de Bataille” que, segundo Yan Morvan, o autor, “não é apenas um livro de fotografia”. “Trata-se de um livro filosófico sobre a História da Humanidade”, disse ao P3. 250 campos de batalha, 430 fotografias dispostas por 660 páginas fazem um retrato da guerra através da sua ausência, apelando à reflexão sobre o motivo porque o homem teima em destruir-se mútua e incessantemente através dos tempos. “Quando chegas ao final do livro, depois de ter visto todas as paisagens, uma após a outra, consegues contar o número de mortos por todo o mundo em consequência da guerra. Não existe acção nas imagens, mas assim funciona. O sentimento é produzido a partir da compreensão de que se está perante pedaços de terra que escondem milhares de cadáveres. Isso faz com que, mesmo não parecendo, exista acção nas imagens.” [Ver fotogaleria]
O fotógrafo francês dedicou 12 anos da sua carreira à reportagem de guerra e acompanhou os conflitos Irão-Iraque, Líbano, Irlanda do Norte, Afeganistão, Ruanda, Kosovo, entre outros. “Quando se começa muito jovem, e eu comecei aos 25 anos, ser fotógrafo de guerra pode ser muito excitante. Pensas ‘faço fotografias e estou a mudar o mundo’. Mas passados 20 anos és apenas um mercenário que ganha dinheiro com o medo e com a morte. Se continuas, acabas por enlouquecer, como aconteceu com a maioria dos meus colegas — que se tornam psicopatas ou suicidas. A guerra é o melhor negócio de sempre. Nunca termina.” Morvan tomou então uma decisão: “Quero fotografar sobre a guerra, mas não quero ver gente. As pessoas estão mortas, mas estão debaixo da terra. Quando vou aos locais, as pessoas continuam lá, mas limito-me a fotografar o cenário onde tudo aconteceu.”
Um "espião" em Israel
A câmara fotográfica de grande formato que utilizou (de 8x10 polegadas) acompanhou o fotógrafo em quatro continentes e 45 países. “Tive problemas no Egipto e na Líbia. No Egipto fui detido e na Líbia fui raptado. Pensavam que era espião. A minha câmara de grande formato foi, em ambos os casos, confundida com tecnologia de comunicação com Israel. As pessoas quando vêem estas câmaras não sabem o que é. Na Líbia também me acusaram de espionagem ao serviço de Israel. Isto aconteceu em Benghazi. Fiquei sem saber o que fazer. A situação tornou-se um pouco feia e por isso decidi pôr-me de joelhos e implorar ao líder que me deixasse ir: ‘deixem-me ir, deixem-me ver a minha mulher e os meus quatro filhos novamente’.”, lembrou. Acabou por ser libertado. “Serás sempre um espião de Israel, onde quer que estejas”, gracejou.
Em todas as fotografias Morvan assumiu o ponto de vista solidário com a parte derrotada, revelando em primeiro plano a área onde mais corpos tombaram. Estudou cada uma das batalhas cuidadosamente. “Trabalhei imenso. Este foi um projecto que exigiu muito estudo e dedicação. Li centenas de livros. Quando saía finalmente para o terreno, conhecia os locais exactos onde me dirigir, a história de cada uma das batalhas com grande detalhe.” Apesar do rigor, “nem sempre foi fácil encontrar os locais exactos”, confessou Morvan. “Algumas vezes não há certezas sobre os locais. Em Espanha, a invasão muçulmana no século VIII foi feita a partir de Gibraltar; houve após a chegada muçulmana uma grande batalha que decorreu perto de um rio. O local exacto é desconhecido.” As dúvidas surgiram em apenas quatro locais, no entanto. 150 páginas do livro são dedicadas a texto sobre cada batalha, isto porque nem todas as batalhas são sobejamente conhecidas. “A minha ideia era proporcionar uma visão histórica, mas não a visão habitual.”
“Podes ser detido, executado, nunca sabes”
“Facilmente se percorrem mil quilómetros por uma fotografia. No Monte Senai, no Egipto, fiz apenas uma fotografia antes de ser detido. Dois dias antes tinha estado em Monte-Grappa, em Itália. Estavam vinte graus negativos e o meu carro ficou atolado na neve. Dei por mim a pensar que não iria conseguir, que seria impossível. A maioria das vezes viajava sozinho e pensava ‘Deus, porque fui começar este pesadelo? Devia ficar em casa e fazer retratos de pessoas famosas. Faria muito mais dinheiro do que a fotografar paisagens.’”
Yan Morvan prepara já o segundo volume do livro “Champs de Bataille”, cujo lançamento está previsto para Março de 2017. O fotógrafo de 61 anos promete nunca parar: “Nunca sabes o que poderá acontecer. Podes ser detido, executado, nunca sabes. Mas se tiveres medo das coisas que te podem acontecer mais te vale dar um tiro na cabeça do que aguentares o aborrecimento.” Sobre a morte, Morvan diz que “quando chegar, chegou”. Acredita só ter conseguido terminar o livro por vontade divina. “Quando virem o livro, irão compreender.”
Não é a primeira vez que Yan Morvan se vê em apuros durante a realização dos seus projectos. A extrema-direita francesa, os Hells’ Angels, a prostituição em Bangcok, a indústria pornográfica dos anos 90 são alguns dos temas que trabalhou além da fotografia de guerra. Em 2013, o fotógrafo foi entrevistado pelo P3 e contou diferentes peripécias, incluindo um rapto por um ‘serial-killer’. É possível ver um resumo da sua carreira nesta fotogaleria do P3.