A felicidade é uma casa com uma janela para o futuro

A arquitectura atravessou a programação da segunda edição do Fórum do Futuro, com convidados representando diferentes modelos e práticas da disciplina, vindos da Índia, do Canadá, de Espanha, mas também gente da casa.

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Imagem da apresentação de Pedro Bandeira Pedro Bandeira
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Reabilitação e ampliação de um edifício do século XIX, em Cedofeita, Porto Vírgula i + Gilberto Figueiredo
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"MIMA House" - interior MIMA
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Projecto "Promise", de Camilo Rebelo Atelier Camilo Rebelo
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Mirko Zardini, director do Centro Canadiano de Arquitectura Ricardo Castelo/NFACTOS
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Phyllis Lambert, fundadora do Centro Canadiano de Arquitectura Nelson Garrido
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Santiago Cirugeda Nelson Garrido

A felicidade é uma casa térrea com um passadiço que nos leva a uma sala suspensa numa árvore, e com gato; é renovar um velho hotel portuense a pensar nas termas romanas; é projectar uma moradia para o designer Philippe Starck; é conseguir uma sombra ampla na praia alentejana do Amaro. Mas a felicidade é também o Edifício Seagram, em Nova Iorque, e os arquivos do Centro Canadiano da Arquitectura (CCA), em Montréal; ou ainda inventar uma arquitectura sustentável em Bombaim, na Índia, ou construir, em conjunto com as populações de Sevilha, equipamentos urbanos à revelia da legislação oficial…

Foi destas múltiplas modalidades ou estados de felicidade que se falou, ao longo de cinco dias, na segunda edição do Fórum do Futuro, que este domingo terminou no Porto.

À imagem da primeira edição deste festival – que o seu criador, Paulo Cunha e Silva, apresenta como uma espécie de “Paredes de Coura do pensamento” –, a arquitectura voltou a estar em destaque num programa que teve mais de meia centena de convidados… Vieram do Canadá, da Índia, da vizinha Espanha; e outros jogaram em casa. E foi com as equipas da casa que fechou, na tarde de domingo, na sala principal do Rivoli com a plateia cheia, o calendário da arquitectura. Naquela que se mostrou cenicamente a sessão menos convencional e mais conseguida, dois arquitectos e dois colectivos falaram do "arquitecto como agente de felicidade”.

O cenário era um grande ecrã enquadrado com uma espécie de janela e mira fotográfica sobre cuja luz se projectavam as silhuetas de seis arquitectos falando da sua arte. A abrir, e num correspondido gesto de homenagem, Pedro Bandeira lembrou o desaparecimento, na véspera, de Pancho Guedes. O professor da Universidade do Minho (cadeira de Projecto) exibiu e comentou depois vários desenhos dos seus alunos com as suas “casas de sonho”, entre o esquisso mais naïf e a colagem ou fotomontagem de imagens e ícones da história da arquitectura. “Dou total liberdade de desenho aos meus alunos”, explicou Bandeira, realçando a preocupação em “desconstruir a ideia de tendência ou de moda” para que eles se exprimam de forma mais pessoal e dêem liberdade à dimensão do sonho da arquitectura utópica.

Leonor Macedo e Pedro Guedes representaram, a seguir, o Vírgula i, um colectivo de jovens arquitectos formado em Madrid em 2012. Explicaram a sua intervenção na Casa da Nespereira a partir de uma ruína, e mostraram o seu projecto de restauro e modernização do histórico Grande Hotel de Paris, no Porto .

A imagem de uma mulher servindo uma chávena de chá num décor barroco arruinado exemplificava de forma sugestiva a sobreposição de tempos e de imaginários com que o Virgula i desenha os seus projectos.

Os MIMA (Marta Brandão e Mário Sousa) assumiram, sem complexo, a oportunidade para “venderem” a sua já conhecida MIMA House, uma casa em módulos que pode ser montada ao sabor da vontade do cliente – e que em 2011 foi distinguida como o Edifício do Ano pelo site Archdaily. E quando os MIMA se deparam com um cliente como o designer francês Philippe Starck, “isso é a felicidade”. Mesmo se Marta Brandão e Mário Sousa dizem não acreditar “na ideia contínua da felicidade”, antes em momentos como esse, em que são desafiados a “projectar o futuro” e a “inventar o espaço para a felicidade” – e esse espaço pode ser também um cubo de vidro numa praia à noite, onde Mário declarou o seu amor a Marta… e ela disse que sim.

Numa intervenção também assumidamente pessoal, Camilo Rebelo, o autor (com Tiago Pimentel) do Museu do Côa, começou por mostrar a vista sobre a foz do Douro que desfruta do seu atelier no Porto, para explicar que a arquitectura e a felicidade são coisas muito pessoais, e “uma questão de comunicação”. E a comunicação de um arquitecto com o seu cliente pode passar pela degustação de um bom vinho – que tem em comum com a arquitectura o facto de ser algo que "se extrai da natureza”.

Entre os projectos apresentados, o arquitecto falou daquele que ultimamente mais tem ocupado o seu atelier, o de projectar “a casa multidisciplinar” para um cliente que depôs integralmente nas suas mãos a definição do programa e do desenho. Talvez esta não seja a melhor definição de felicidade, admite Camilo Rebelo.

Arquitectura e participação

Nos dois dias anteriores, o Rivoli acolheu Phyllis Lambert e Mirko Zardini, respectivamente fundadora e director do CCA, em Montréal, ambos apresentados à plateia do Rivoli pelo arquitecto Roberto Cremascoli. Zardini, crítico e curador italiano, começou por manifestar-se “contra a felicidade”. Não por ser contra “a felicidade privada de cada pessoa, mas porque, hoje em dia, a felicidade tornou-se uma espécie de indústria”. É contra esse modelo que trabalha aquela instituição canadiana, que é actualmente um arquivo de referência no contexto internacional da arquitectura – e que este ano recebeu arquivos e uma exposição de obras de Álvaro Siza.

“No CCA não estamos felizes, temos muitos problemas para resolver”, e é por essa razão que “promovemos a discussão”, com base nos arquivos e testemunhos dos arquitectos, disse Zardini, lembrando e mostrando maquetas, esquissos, manuscritos e fotografias relativas a figuras como Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Mies van der Rohe ou Gordon Matta-Clark. E terminou a sua intervenção deixando no ecrã o manuscrito deste arquitecto que, de resto, é o lema que o visitante pode ler ao entrar no edifício do CCA:  “Eis o que temos a oferecer-lhe: a confusão guiada para um objectivo bem preciso”.

Da instituição canadiana falou também, naturalmente, a sua fundadora Phyllis Lambert, 88 anos, e que trouxe ao Porto o testemunho de uma vida dedicada não apenas à arquitectura mas também às causas públicas.

Lembrando a importância do Edifício Seagram, que, por sua intervenção, foi projectado, na década de 1950, para a empresa do seu pai pelos arquitectos Mies van der Rohe e Philip Johnson, a “Leão d’Ouro” da Bienal de Arquitectura de 2014 classificou-o como “um oásis na floresta negra da destruição urbana em Manhattan, em meados do século XX”. E o essencial da intervenção de Phyllis Lambert, mesmo em resposta às interpelações de António Mexia e António Gomes de Pinho e da plateia, foi o apelo à participação da sociedade civil na defesa das suas cidades. “Apenas os cidadãos empenhados podem exigir e assegurar que os poderes públicos salvaguardem os oásis que ainda existem nas nossas cidades, defendeu Phyllis Lambert, lembrando também o caso específico da sua cidade, onde mobilizou a criação de um movimento e de uma estrutura, a Héritage Montréal, que tem vindo a defender o seu património histórico e arquitectónico. “É isto a democracia”, sintetizou a arquitecta.

Outra forma de democracia, esta de aplicação mais directa e algo provocadora, foi defendida por Santiago Cirugeda, o arquitecto sevilhano que veio ao Porto apresentar as suas arquitecturas colaborativas.

Depois da abertura do painel com o arquitecto indiano Bijoy Jain a falar do seu Studio Mumbai – sessão a que o PÚBLICO não assistiu –, Cirugeda confirmou no Rivoli por que é apelidado de “arquitecto-guerrilheiro”. Numa conferência co-promovida com a companhia de teatro Mala Voadora e integrada no projecto Happy together, Cirugeda comentou, num registo sempre divertido – e que não dispensou inclusivé o calão –, alguns dos seus projectos de intervenção no espaço público, tanto em Espanha como noutros países onde tem levado a sua forma iconoclasta de utilizar espaços e materiais perdidos e transformá-los em bens de usufruto público. Mesmo que sejam feios – “Quem é que também não tem um amigo feio, e de que se gosta muito, porque é simpático, alegre, companheiro – mas é feio?!”, disse.

Nesse sentido, zurziu no star system dos arquitectos Pritzker, com referências a Rem Koolhaas e à Casa da Música, a Zaha Hadid e a um seu projecto em Sevilha que acabaria por ser demolido, porque ocupava... uma zona verde, ou a Rafael Moneo, que tem por sua conta “meia Madrid”. A prática construtiva e colaborativa de Cirugeda promove a auto-construção e a participação das populações, e explora os limites e as lacunas da lei – incluindo “trabalhar sem capacete”.

É uma forma de “interpenetração com as comunidades locais” num “diálogo problemático com as maneiras de fazer tradicionais e com os processos administrativos” que tem também o seu lugar na sociedade, comentava para o PÚBLICO, no final da sessão, Carlos Guimarães, director da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

Já perto do fim do Fórum, Paulo Cunha e Silva assinalava também que “a felicidade que discutimos aqui não é um campo de sorrisos, é também os seus contraditórios”. E lembrava que a felicidade não é algo que se possa “impor politicamente”.

No próximo ano, a arquitectura – que tem um espaço importante no Fórum “porque é um dos grandes argumentos internacionais da marca Porto”, realçava o vereador da Cultura da câmara do Porto – vai voltar a ocupar um lugar central no programa da terceira edição do festival, que terá como tema a "Ligação".

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