Esta nossa ruína

1. Ao longe, Ricardo Domeneck parece saído de um livro de Dostoiévski. Ao perto também (então quero ser o Aliocha Karamazov, dirá ele). Depois, quando conta a história da sua origem, é caipira pirapora nossa senhora de aparecida, mas de olho puxado, cabelo liso: um índio, claro. Veio, vem vindo, desde o interior paulista, de Bebedouro para Berlimbo, como ele chama a Berlim, onde mora há 13 anos porque é barato e os moços são bonitos. Herdou o apelido catalão de um avô, como também, talvez, o 1,80m e tal de altura. O seu primeiro livro de poemas, há dez anos, chamou-se Carta aos Anfíbios. Além de poeta, é tradutor, crítico, artista visual, editor de uma revista, a Modo de Usar, onde já publicou centenas de autores, dezenas deles portugueses, e passou anos a pagar o aluguer do quarto fazendo de DJ. Será tão provável vê-lo sentado junto à campa de Paul Celan como a errar pelo México, seja como for, de cigarros no bolso. Há dias passou por Lisboa e Porto, veio lançar o seu sexto livro (primeiro em Portugal, edição Mariposa Azual), Medir com as Próprias Mãos a Febre, 120 páginas de um lirismo transgénero e trespassante, entre o século XXI e Dom Dinis. Raro encontrar poesia tão viva e coincidente com a dança dos mortos, esta nossa ruína, agora, aqui.

2. De Nabucodonosor a River Phoenix, o poeta é uma Eva a roubar as costelas dos homens, pois quem disse que Frankenstein é a criatura e não o criador. Sempre sabendo, primeiro, que nenhuma criação supera a alegria de uma cama desfeita e, depois, que ao saltar da cama lá estão os homens, sempre no medo dos bárbaros, dos estrangeiros, e por isso mais pequenos a cada fronteira. Se as fronteiras são uma solução, resta à poesia detoná-las, tomando tudo como seu, tempos e espaços, séculos e lugares, línguas e modos da língua, numa confluência em que cada um olhe a própria cara, e só cada um saberá o que vê. Ricardo Domeneck faz isso constantemente, como crítico, tradutor, editor, quando põe tantos poetas em circulação, os recupera, propõe, troca, revela, até ser impossível saber quem é o bárbaro. E faz isso como poeta.

3. Em 480 a.e.c., gregos e persas travaram a Batalha de Termópilas (Portas Quentes, em grego). Os soldados gregos (hoplitas) perderam, mas um ano depois triunfaram em Plateia. No Brasil existe uma cidade termal com o nome Poços de Caldas, para onde a elite caipira da infância do poeta gostava de viajar. Então Ricardo Domeneck escreveu um poema chamado Bilhete dos hoplitas aos que leem sobre as Portas Quentes nas termas de Poços de Caldas, que termina assim:

Somos meros esqueletos
nas Termópilas. Vocês
aí estão, gordos, lendo,
as luas de mel em termas.

A nós, as Portas Quentes,
mas a vitória em Plateia.
Vocês? Leite morno, Lete
diário, Poços de Caldas.

Espartanos, nesta esfera,
nem terão sua capital.
Atenas deverá dinheiro
a quem ora são bárbaros

vivendo nas florestas
ao norte. Que importa?
Nós escolhemos morte
a ser escravos, servos.

Foto

Às vezes resta apenas,
como àqueles gregos,
pentear seus cabelos
e esperar pelos persas.

4. Do seu quarto alugado em Berlimbo, Ricardo Domeneck não fala do Brasil como de uma Ítaca, a casa está nele, seguem-se um ao outro. E talvez por ser um gay brasileiro em Berlim no século XXI, ou simplesmente por ser o poeta que é, consegue como raros pôr-se na cabeça de mulheres na sombra, literalmente desaparecidas, às mãos dos militares da ditadura ou do patriarcado que hoje sai à rua reclamando a ditadura de volta, apoiando políticos como Eduardo Cunha. Um país em que as mulheres são maltratadas, estupradas e ainda correm o risco de ir para a cadeia se abortarem ou morrerem de aborto. Sempre da mulher a culpa e o crime, diz um dos vários poemas deste livro em que Ricardo Domeneck se põe na pele de mulheres, sempre elas, cabras e cadelas. Cá está então Maria Bonita, a cangaceira, mulher de Lampião, degolada viva pela polícia. Cá está Ísis Dias de Oliveira (1941-?), título que já diz tudo, nome, data e ponto de interrogação, falando pelos muitos desaparecidos da ditadura militar. Que seria feito de Ísis hoje? Talvez ela vivesse / com os três filhos / que jamais teve / numa quitinete / de aluguel, feliz / ou infeliz, como sói / ser, talvez. Talvez / vestisse ao sol / os sapatos favoritos / já meio gastos, roubados / da amiga / / com quem já não falasse, / talvez. Talvez / o suicídio já a houvesse colhido, / ou o segundo marido, / quiçá tão-só um sorvete / de tamarindo, talvez. Ou Ana Emília Solon Ribeiro, dita da Cunha, dita de Assis, a mulher que deixou o escritor Euclides da Cunha por um Assis tenente muito mais novo. Ou, a contracorrente de Camões e toda uma tradição, o poema em que Constança de Castela funga contra o castelo de cartas de Inês de Castro.

5. Mas quer tudo conflua para o quarto, quer tudo se espalhe a partir dele, o tempo do poeta é este, hoje, apocalíptico. Penso no musgo das fontes / espero a radiação chegar / vou-me acostumando / aos poucos / à companhia das baratas, diz um poema. Ou: Façamos como os pinguins / que memorizam os timbres / dos seus parceiros / e os acham no gelo. // Há-de servir-nos enfim / na secura e no deserto. Ou ainda

Deixem-me recitar o que história ensina, a partir de uma frase de Gertrude Stein. Que ensina então a história? Talvez nada, diz o poeta, porque não / se arde com a febre / alheia, verso que dá nome ao livro. E o poema segue: Mal há tempo / para justiçar os mortos / cumulativos. (…) Fronteiras unem, separam, / e nós, na fila de espera (…) já no esquecimento / quais os crimes / originais, se somos o que vinga / ou o que incinera. (…) Toda morte / é uma queima de arquivos.

6. Sobre isto se ergue aquele a quem o poeta chama O Moço, sua musa ou multa, vá saber. Andará por aí, como fazem as musas, não dando a mínima para o facto de alguém ter feito dele destinatário de alguns dos mais gloriosos poemas de amor da língua portuguesa, meia dúzia dos quais, pelo menos, homenageando de caminho Martin Codax e Dom Dinis. Camões é, com eles, grande presença aqui, como são os trovadores provençais ou a raposa dizendo ao Pequeno Príncipe que só quer compartir do seu cativeiro, mútuo e mesmo. E eis o poeta amador do seu Moço como qualquer cavaleiro andante, mas no promíscuo século XXI, nem o amador deixando de o ser por isso, nem por isso deixando de ser amador. De Safo a Pasolini, inscreverá o Moço Pelos séculos / Dos séculos / Amém / Que amem, e ao longo dos espaços, do Haiti ao Taiti, de Madagáscar a Macau, imagina-se mesmo com ele em concha, já ambos esqueletos, escavados pelos arqueólogos, enfim misturados num pó. Não podendo ir mais para a frente, escreve o Texto em que o poeta apaixonado pensa n’O Moço e regride até na linguagem, todo em caipira pirapora, como falaria uma criança lá em Bebedouro. Assim, depois da erudição ocidental, há poemas de amor em dialectos do interior do Brasil, vocabulário, sintaxe, grafia, toponímia, como aquele todo em im, até que o Moço diga sim e sim, e sim, e o poeta enfim e enfim. Afortunado moço que assim é cantado, ainda que assim só exista no amplo coração de Frankenstein Domeneck, bardo romântico.

7. É então que vem a Carta ao pai, moribundo no momento em que o poeta se lhe dirige, beijando-o na testa como a filhoa que o pai nunca quis conhecer inteiramente. A última palavra do livro é um ideograma, que é uma lápide. E silêncio.

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