Desde o início dos anos 1980 que Laurie Anderson olha o mundo ao microscópio, mostrando-nos que existem muitas formas de narrar a realidade interna e externa, naquela sua forma particular de dizer as palavras, entre o falado e o cantado, com qualquer coisa de encantatório.
O que é incrível nela é que a sua vontade de experimentar, de ensaiar novas formas de contar, nunca se dissocia da interpelação afectiva, tocante, humana. Dir-se-ia que compõe poemas com som e palavras, com a sua voz a desenhar formas curvilíneas, saindo calorosa e intimista.
A banda-sonora de Heart Of A Dog assume a maior preponderância da voz, mas na verdade acaba por não ser radicalmente diferente de ouvir outros discos da americana. A música é quase sempre ambiental, incorporando teclados planantes, algumas orquestrações assentes nos violinos e por vezes elementos sintéticos, deixando todo o espaço do mundo para a voz navegar.
A voz é o mais importante instrumento aqui, ruminando, meditando, interpelando-nos. É como se desenhasse circunferências vocais devolvendo-nos histórias, que se colam umas às outras, sobre a morte, o amor, a perda, a memória, a intimidade. Como acontece quase sempre nas suas histórias, uma lucidez extrema cruza-se com momentos cómicos e outros surreais.
O centro da acção é a sua relação com Lolabelle, o cão, que morreu em 2011, acabando por criar inevitavelmente ressonâncias com a morte do marido, o músico Lou Reed, que morreu em 2013, e da mãe, Mary Louise, com quem tinha uma relação pouco afectuosa. Muitas das coisas que narra partem da sua experiência – há memórias da infância expostas, referências à América do pós-11 de Setembro, abordagens ao seus estudos de budismo ou reflexões sobre sonhos – e o tom adoptado é sempre introspectivo. E no entanto, nunca nos sentimos invasores de espaço alheio.
Aquelas histórias são também nossas, porque a vida e morte do cão acabam por motivar uma reflexão sobre a perda em geral. Compreendemos aquele estado emocional em suspenso, quando algo expirou e outra coisa se prepara para nascer. Por vezes podemos sentir que não existe propriamente uma narrativa a conectar todos os elementos, mas na verdade há uma lógica interna. E acabamos por nos deixar hipnotizar por aquelas palavras porque Laurie Anderson as consegue tornar universais.