O meu problema com a esquerda
A esquerda vê política onde a direita só está a ver matemática.
Caros leitores de esquerda, hoje decidi abrir-vos o meu coração. Há dias encontrei uma amiga numa festa que me disse: “João Miguel, o que mais me impressiona nos teus textos é que tu te estás completamente a borrifar para o que as pessoas pensam de ti.” O que à primeira vista poderia parecer um bonito elogio era, na verdade, um soturno lamento, oriundo de uma mulher pouco dada às direitas. O que ela quis dizer foi: “Tu até és um gajo porreiro, pá, como é possível que escrevas tantas baboseiras?”
Pode aprender-se muito numa festa com bar aberto, e eu fiquei logo ali convencido que aquele lamento respondia a uma das grandes questões do Portugal contemporâneo: porque é que a política nacional voltou a extremar-se tanto, de uma forma nunca vista desde o PREC? A resposta da minha amiga era clara: porque as actuais esquerda e direita não conseguem sequer compreender-se. A incompreensão vem muito antes da qualquer divergência ideológica.
Reparem. Sendo a minha amiga minha amiga, ela não me consegue ver como um estafermo. Mas ao não me ver como um estafermo, ela não consegue perceber como é que eu defendo o que defendo. É nesse sentido, e imbuído do espírito Verdade e Reconciliação, que quero explicar melhor o meu problema com a esquerda, a ver se os caros leitores conseguem entender-me um bocadinho antes de recorrerem aos estafados argumentos do “tu queres é tacho” ou à cassete da “ditadura dos mercados”.
O meu grande problema com a actual esquerda nasce do desespero perante a impossibilidade de estabelecer os factos que deveriam preceder qualquer discussão. Refiro-me a factos objectivos, relacionados com a nossa capacidade de produzir riqueza, de pagar a dívida, de influenciar o rumo político em Bruxelas, de enfrentar a crise demográfica ou a sustentabilidade da Segurança Social. Estes factos não deveriam ter cor política. Deveriam ser neutros, e a ideologia começaria a ser debatida a partir do seu assentamento: temos estes números e estes problemas, agora vamos definir as políticas – mais à esquerda ou mais à direita – para lhes dar resposta. Ora, a direita acha que boa parte da esquerda começa por negar os factos, e que portanto há um profundo desentendimento antes sequer de chegarmos às políticas. Estão a ver o problema?
É como se o espírito Boaventura Sousa Santos tivesse infectado a consciência da esquerda portuguesa com a sua convicção de que não há factos mas apenas interpretação de factos, e de que toda a realidade é somente construção social. Nesse relativismo radical, a que os nossos cientistas sociais dão o nome de “ciência crítica” e que recusa conformar-se “ao que existe”, a ideologia toma de assalto a velha ciência (ou seja, aquela que diz que dois mais dois são quatro), deixando esquerda e direita despojadas de quaisquer bases sólidas para poderem discutir em conjunto. A ideologia martela alegremente os factos para os ajustar às suas teorias – e sob tortura, como se sabe, os números confessam tudo aquilo que a gente quiser.
É daqui que nascem frases como aquela que Jerónimo de Sousa proferiu na sua última entrevista – “gostava que um economista me explicasse por que é que o défice tem que ser de 3% em vez de 4%” –, e todas as outras variantes que António Costa parece agora ansioso por acolher. A esquerda vê política onde a direita só está a ver matemática. E a esquerda diz: “Ah, mas isso já é política!” Mas não, é só mesmo matemática.