O Divertimento inquietante de um refugiado húngaro
Este testemunho continua a fazer do seu autor um exilado.
“Esta viagem é verdadeiramente um salto no desconhecido a partir do conhecido intolerável”, escreve Bartók a uma amiga em Basileia (carta de Genebra, 14 de Outubro de 1940). “Mas não há nada a fazer; nem sequer se põe a questão ‘tem de ser?’; pois tem de ser.” É uma alusão implícita ao andamento final – “A decisão dificilmente tomada” – do Quarteto de Cordas op. 135 de Beethoven. Encabeçam-no as “melodias da fala” duma pergunta e duma resposta sobre as quais se constrói a trama dramática: "Muss es sein? ('tem de ser?'); es muss sein! ('tem de ser!')"
A “viagem aventurosa” levara Bartók e a mulher, Ditta, da Hungria, por Itália – terra “a que viraram as costas com alegria” –, até à “mais feliz” Suíça. Atravessaram de autocarro a França “faminta” de Vichy em direção à fronteira espanhola. Aqui, o controlo alfandegário “implacável” obrigou-os a deixar para trás toda a bagagem. Seguiram para Badajoz, mas não esperaram pela recuperação dos bens, que mandaram reexpedir, e apanharam o primeiro comboio para Lisboa. À justa! Pois foi já no comboio, na madrugada do dia 20, que souberam da partida do barco para Nova Iorque, não a 23, mas sim nesse próprio dia, às duas da tarde.
“Espanha tornou-se num país horrível, dá a impressão de só terem um fito: expulsar de lá todos os estrangeiros... Não têm nem pão, nem tabaco, nem açúcar. Uma miséria incrível!” “[Portugal, porém,] nada em fartura; que pena não podermos ficar alguns dias como tínhamos pensado” – escreve Bartók, que já estivera no nosso país por duas vezes (carta de 27, das Bermudas). Enquanto Ditta, noutra carta, esta de Lisboa, do dia 20, constata: “Aqui o sol brilha maravilhosamente, está aqui uma imensidade de ‘estrangeiros’, e muitos, sem nos conhecerem, acarinharam-nos. Aqui as pessoas são sociáveis.”
O exílio de Bartók na sua própria pátria começara uns anos antes, com a nazificação do país: “Ameaça-nos o perigo de ver a Hungria entregar-se, por sua vez, a este regime de ladrões e assassinos... a Hungria, onde, infelizmente, quase todos os cristãos ‘cultos’ rendem homenagem ao regime nazi: sinto-me verdadeiramente envergonhado de ser originário dessa classe!” – confessa em carta de Abril de 1938, pouco depois da anexação da Áustria. Entretanto, cortara com a “nazificada” editora (Universal Edition), proibira a difusão das obras nas rádios alemãs e italianas e reclamara, indignado, às autoridades do Reich a sua inclusão na Exposição de Música Degenerada (inaugurada em Maio de 1938, em Düsseldorf).
É em Agosto de 1939, a poucos dias de deflagrar, que a iminência da Segunda Guerra Mundial irrompe crucialmente na sua música. A obra – um Divertimento para orquestra de cordas – resulta de uma encomenda de Paul Sacher, que põe à disposição do compositor “uma autêntica casa rural: um objeto etnográfico” no cantão de Berna. Bartók trabalha nela durante duas semanas, na paz dos Alpes, mas imerso em sinais de guerra: “Os pacíficos, leais suíços são obrigados a viver na febre da guerra... os jornais cheios de artigos... as medidas de defesa... o estado de alerta do exército...; vi com os meus próprios olhos... blocos de rocha contra blindados, incorporados no solo...” (Carta de 18 de Agosto, ao filho.)
Por quê um Divertimento, em tais circunstâncias? Talvez por se sentir “um músico do antigo regime, que o seu mecenas convidou”. Mas talvez também para radicalizar na obra o paradoxo. É um Divertimento em que a alegria de fazer música, o exercício lúdico das destrezas, a seiva das danças populares são brutalmente interrompidos pela inexorável aproximação da catástrofe: um molto adagio inquietante, culminando em “trilos do diabo” aterradores, e esvaído num gesto de luto. Testemunho tão carregado de atualidade que continua a fazer do seu autor um exilado.
Professor catedrático jubilado (FCSH-UNL)