Parabéns!

É particularmente interessante notar o modo como a arquitectura pode circular do espaço do jornal diário para os vários suplementos, à procura do seu lugar. Ou ser matéria partilhada entre os jornalistas e os críticos em trabalhos de colaboração.

Nos anos 1980, o Expresso, o Jornal de Letras, Artes e Ideias, e depois O Independente, inauguraram uma escrita regular sobre arquitectura, com o José Manuel Fernandes, o Manuel Graça Dias, o Paulo Varela Gomes, entre outros. Em particular, Graça Dias, do interior da disciplina, e Varela Gomes, como historiador, de fora da disciplina, estabeleceram um padrão alto de crítica, comentário e divulgação. 

Nos anos 1990, em especial a partir da Expo’98, o PÚBLICO transformou-se no jornal que com maior consistência, regularidade e convicção, traz a arquitectura para o espaço mediático.

Todos concordaremos que o aparecimento do PÚBLICO em 1990 foi um salto qualitativo na imprensa e nos media em Portugal. Poucos anos depois da nossa entrada na Comunidade Económica Europeia fixou um momento esperançoso, de confiança em Portugal.

Esta maior civilidade que se cultivava, cedo teve que se cruzar com a arquitectura.

O PÚBLICO significava uma maior maturidade e abertura no espaço mediático. Quero dizer aqui em Lisboa, na Ordem dos Arquitectos, que muita dessa abertura tinha também uma componente regional: o PÚBLICO era também um jornal do norte, do Porto, do resto do país.

E essa é uma questão muito importante também para a arquitectura. As notícias e também a crítica, gradualmente, tinham uma componente nacional. Isto é, os arquitectos do Porto não eram tratados numa viagem ao norte, como algo no limiar do exótico.

E portanto com uma certa naturalidade, como se fosse simples, a arquitectura começou a surgir regularmente, com cada vez menos imprecisões no trabalho dos jornalistas, e com cada vez mais crítica na colaboração dos arquitectos.

Até hoje, onde a maior parte das vezes o trabalho dos jornalistas do PÚBLICO, seja sobre casos na província, seja sobre acontecimentos culturais centrais no campo da arquitectura, é quase sempre irrepreensível.

A verdade é que nesses artigos dos anos 1990, sobre casos pequenos ou grandes, começou a aparecer o nome do arquitecto e não só o do presidente da câmara ou o do político local. O arquitecto ganhava direito à cidadania de ver o seu nome ligado à obra, em notícias que confirmavam um avanço do estatuto da arquitectura e dos arquitectos em Portugal.

O caminho foi longo, no entanto, e nada fácil.

O dos jornalistas, mas também o dos críticos. Todos sabemos que a arquitectura embora faça parte do espaço público tem os seus códigos ou o seu jargão, se se preferir.

Às vezes a linguagem dos arquitectos é insuportável, outras vezes é belíssima. Se calhar depende de quem a usa, e do modo como se usa, só para complicar.

Lembro-me perfeitamente do Paulo Varela Gomes se irritar com o modo como dizemos vulgarmente que os edifícios “dialogam” com os sítios ou com outros edifícios. O Paulo dizia que era pena que não estivesse lá um gravador para captar a conversa!

Mas é evidente que os edifícios dialogam com os sítios. Basta lembrarmo-nos como o Salvador Dalí acreditava que os arranha-céus de Manhattan se reuniam à noite para conspirar…

Na verdade, se todas as disciplinas e profissões têm os seus códigos de linguagem, os seus gurus e os seus tiques, porque é que a arquitectura não pode ter também os seus?

Os arquitectos sabem dar o braço a torcer, no entanto, se isso permitir que a encomenda se consuma. Estão geneticamente obrigados a isso. Controlar ou descontaminar a linguagem não é o pior nem o mais sujo dos compromissos…

E portanto há uma espécie de encontro a meio da ponte, entre os editores e os críticos. Uma ponte como a Pedro e Inês, em Coimbra, de Adão e Fonseca e Cecil Balmond, que tem um ziguezague no meio. E debaixo pode não correr água...

Embora com dificuldades foi-se encontrando uma normalidade.

A partir de 1995, quando a Ana Vaz Milheiro começou a escrever no PÚBLICO, foi feito um caminho: sem se negar “o som dos arquitectos” como nos disse inesquecivelmente Mark Wigley em entrevista aqui publicada mas procurando um certo despojamento da linguagem; saindo do tom confessional, vago ou elíptico que os arquitectos gostam ou gostavam de usar.

Todos tivemos que aprender. O jornal criando espaço para a arquitectura, os jornalistas esforçando-se por entrar no assunto, os críticos procurando comunicar, os leitores – em particular os arquitectos – esforçando-se por ler.

É sabido como a escrita de arquitectura num jornal diário e mesmo nos suplementos culturais obriga a uma assertividade que pode parecer superficialidade para os mais exigentes ou antagónicos.

E essa mesma assertividade pode ser intransponível para o leitor comum.

Facilmente se pode acabar não agradando a ninguém. Há seguramente um certo masoquismo em escrever sobre arquitectura nos jornais; mas há também a responsabilidade de sabermos que podemos influenciar decisões políticas, como já aconteceu; ou de tentarmos inscrever pessoas, obras ou acontecimentos que pensamos deverem ser partilhados por todos.

É, no mínimo, um caminho estreito. Mas o PÚBLICO criou-o com a persistência dos editores e a contribuição dos críticos e arquitectos que escreveram ou ainda escrevem no jornal e me dispenso de nomear um a um.

É particularmente interessante notar o modo como a arquitectura pode circular do espaço do jornal diário para os vários suplementos, à procura do seu lugar. Ou ser matéria partilhada entre os jornalistas e os críticos em trabalhos de colaboração.

Todos sabemos da dificuldade que os jornais atravessam hoje em termos financeiros e de visibilidade. E nesse sentido é seguramente um esforço manter a presença da arquitectura, num país dividido a meio entre a política e o futebol.

Sei que a direcção e os editores são “pressionados” para manterem essa presença. Com esta atribuição da Ordem do Arquitectos, a pressão fica mais alta… Na verdade, eu acho que a arquitectura é um Membro Honorário do PÚBLICO, e portanto é natural que o PÚBLICO seja Membro Honorário da Ordem dos Arquitectos.

Quando a Bárbara Reis me pediu para fazer esta apresentação aceitei com agrado. Obviamente como colaborador do PÚBLICO desde 2002 não estarei fora daquilo que descrevo. Mas isso não tem importância nenhuma porque o que hoje se assinala é o conjunto que o PÚBLICO soube construir.

E porque sei o que custa, queria cumprimentar todos os arquitectos e críticos que regularmente ou pontualmente foram escrevendo no PÚBLICO ao longo destes anos.

O PÚBLICO de facto introduziu uma mudança geracional, mas foi talvez um acaso ou apenas uma consequência da passagem do tempo. Talvez se possa dizer que os críticos do PÚBLICO tentaram fazer uma crítica optimista, ao sabor do país optimista que nós éramos ou fomos durante um breve intervalo.

E queria também cumprimentar os jornalistas que, como sugeri no início, foram interiorizando a arquitectura como assunto e foram crescendo em rigor e qualidade.

O mais importante é que a arquitectura no PÚBLICO não é tratada na secção “acredite se quiser”: “veja o edifício mais alto e mais estúpido do mundo.”

No PÚBLICO pode-se ler uma entrevista com o Charles Jencks, historiador, paisagista, inventor do pós-modernismo [no Ípsilon desta semana]; e, há alguns dias, com grande detalhe, pela Sandra Rodrigues, a polémica da revitalização do Mercado 2 em Viseu no “diálogo” com a praça desenhada por Siza há 13 anos.

Felicitando a Bárbara Reis por esta justa atribuição ao jornal que dirige, queria por fim assinalar – porque, como se diz, é da mais elementar justiça – o papel fundamental da Isabel Salema enquanto editora de arquitectura, ao longo destes anos. Não havia arquitectura no PÚBLICO, tal como a fomos lendo e escrevendo, sem a Isabel Salema; é um facto.

Mesmo com as desventuras dos últimos anos, Portugal é um país mais civilizado por causa deste jornal e nós arquitectos temos o direito de reclamar a nossa quota-parte.

Parabéns ao PÚBLICO e parabéns aos arquitectos!

Crítico de arquitectura. Texto lido na cerimónia de atribuição do título de membro honorário da Ordem dos Arquitectos ao jornal PÚBLICO

 

 

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