Não acredito em governos, mas eles existem
Todas as novelas criadas em torno da rejeição da ideia de um governo de esquerda fazem lembrar a celebre expressão “não creio em bruxas, mas que existem, existem”. Podem em teoria existir governos de esquerda, mas só em teoria.
Depois de uma semana de comentários televisivos com origem em militantes partidários, em comentadores alinhados maioritariamente com uma visão histórica da realidade e com múltiplas estratégias de pré-vitimização de todos os partidos envolvidos, eis-nos chegados à semana em que o Presidente da República receberá os partidos com assento parlamentar.
E agora? Há governo da coligação negocial à esquerda? Há governo da coligação votada de direita? Essas não são as perguntas mais interessantes, pois há outras que estão a faltar, mas antes de as enunciar vale a pena fazer uma chamada de atenção.
O que as duas últimas semanas demonstraram é que, em período de formação de governos, não vale a pena tentar explicar na televisão o que se passa porque a maioria dos intervenientes, ou pelo menos um largo grupo de pessoas, não está disposto a ouvir outra coisa que não seja baseada na ideia de que “sempre foi assim”.
Essa é uma situação terrível, porque determina que, por exemplo, quem nas universidades ou centros de investigação se dedique a estudar política, sociedade e media se sinta como num universo paralelo, um pouco como que sugerindo que “a universidade sabe imensas coisas úteis, mas a política é para os políticos, não vale a pena aumentar a confusão explicando o que se pode estar a passar, em particular, se for diferente do que estamos a dizer”.
Por exemplo, uma análise das duas últimas semanas demonstra o fraco interesse em ouvir explicações de quem percebe de sondagens, de sistemas eleitorais, de formações de governos na Europa ou da análise de práticas e representações políticas. Em particular, se o que se tiver para dizer colocar em causa as premissas da discussão em curso, o que é o mesmo que perguntar: “é, ou não, verdade que tem sido sempre governo o partido mais votado?”
Em estilo de anedota, o ocorrido ao longo destes últimos dias lembra-me um facto de há mais de uma década, em que depois de se ter divulgado um estudo sobre futebol a um conjunto de jornais desportivos nenhum mostrou interesse em publicá-lo. Tal sucedeu, provavelmente, porque o estudo era sobre quantos milhões de benfiquistas, sportinguistas e portistas há e sobre quantos milhões de cidadãos não gostam de futebol em Portugal e existindo um potencial de desconstrução da realidade poderia colocar-se em causa a construção da “realidade desportiva” existente.
Mas regressando à política, para quem analisa o sistema dos media e o funcionamento do jornalismo não há nada de anormal nas dinâmicas previamente criadas afastarem outras formas de responder ou mesmo impedirem que se façam outras perguntas.
É assim que funciona em todo o lado o sistema dos media, uma vez em velocidade de cruzeiro não adianta dizer coisas diferentes, ninguém está disponível para as ouvir, simplesmente é impossível desconstruir em directo ideias pré-concebidas que informem o debate político – e, atenção, isso não configura colocar em causa o pluralismo do sistema.
Resumindo, tendo-se partido da história da democracia portuguesa, e não da possível evolução histórica da democracia, o ponto de partida da discussão pública sobre um potencial governo de esquerda só poderia, como efectivamente se demonstrou, assentar em que “nunca foi visto em Portugal um partido que perdeu eleições formar governo, logo não pode acontecer. E se acontecer não devia poder acontecer, porque nunca aconteceu”.
Poderíamos até acrescentar que se isso tiver acontecido muitas vezes no estrangeiro e se for prática corrente partidos menos votados formarem lá governo, isso também não interessa discutir, porque “eles votam nos deles à maneira deles e nós nos nossos à nossa maneira”.
A questão não é se pode haver um governo de esquerda, claro que pode, mas sim o que quer dizer podermos ter um governo de coligação de esquerda ou um acordo de governação à esquerda. Na minha opinião, quer dizer que Portugal mudou. As sociedades mudam e talvez Portugal tenha completado agora um ciclo iniciado há 40 anos.
Em Portugal sempre foram os partidos mais votados a serem governo porque, ao longo de 40 anos, vencendo o PS ou o PSD sem maioria absoluta, só havia mais um partido ou um conjunto dos seus deputados disponível para formar governo, o CDS-PP.
Essa percepção de que só havia um partido disponível para além de PSD e PS começou por resultar de uma realidade, a oposição do PCP e PEV em negociarem governos com PSD e PS, mas num qualquer momento ganhou a forma de certeza inabalável e imutável do estilo “toda a gente sabe que o PCP e o PEV nunca apoiarão um governo do PSD ou do PS”.
Por sua vez, com a chegado do BE ao Parlamento apenas se fez uma adaptação das certezas quanto à formação de governos passando a assumir-se que “toda a gente sabe que o PCP, BE e PEV nunca apoiarão um governo do PSD ou do PS”.
No entanto, essa certeza absoluta era, na realidade, apenas circunstancial e não definitiva, mudaria quando tal fosse do interesse dos protagonistas. E, independentemente do resultado final das negociações, este é o momento em que parece poder ter mudado.
Mas porque mudou a percepção de PCP, PEV, BE e também do PS? A minha sugestão é que a mudança não é apenas circunstancial e devida a um conjunto de factores que se traduziu nas diferentes votações dos partidos. O PàF, o PS, a CDU, o BE e o PAN tiveram as votações que tiveram porque individualmente os portugueses votaram neles, porque confiaram, em diferentes graus, nos seus líderes, programas e deputados.
Mas o que nos diz a leitura agregada de votos? O que podemos inferir? A hipótese que aqui quero partilhar é a de que terminámos um ciclo político longo de 40 anos. Os cidadãos continuam a confiar em todos os partidos em que votaram, não fizeram desaparecer nenhum, embora tenham aumentado os votos nuns e diminuído noutros. O que argumentaria é que perderam a confiança nos fundamentos desta república iniciada em 25 de Abril de 1974 e isso se traduziu na distribuição de votos.
Os portugueses continuam a gostar de defender a ideia de que todos têm direito a um futuro melhor mas deixaram de acreditar que isso seja possível para todos. Deixaram de acreditar nessa igualdade de inclusão devido à crise de 2008 e aos seus efeitos, aumentados primeiro pela governação final do PS e, depois, pela do governo PSD-CDS, no contexto de crise, intervenção externa e pela política de austeridade associada à ideia de que “se viveu acima das possibilidades”.
Os portugueses votaram nestas eleições sabendo que a ideologia dominante na União Europeia está assente no comércio livre, no Estado Social, no pro-europeianismo e na austeridade.
No entanto, porque deixaram de acreditar que o futuro da república será sempre melhor, tal como o ideário do 25 de Abril lhes havia anunciado, desejaram abrir o leque de possibilidades de governação na expectativa de que lhes demonstrem que não é inevitável que nem todos possam aspirar a um melhor futuro.
Daí que possamos imaginar que os eleitores também quiseram dizer “não acreditamos em governos, mas eles existem” e talvez até sejam capazes de governar, demonstrando que ainda podemos continuar a caminhar no sentido de uma república de todos e não de uma república de exclusão.
Professor do ISCTE-IUL, em Lisboa, e investigador do College d'Études Mondiales na FMSH, em Paris