Ferreira Leite e o alarmismo
A Manuela Ferreira Leite exige-se um pouco mais de rigor
As pessoas responsáveis e por maioria de razão aquelas que ocupam ou já ocuparam altos cargos públicos têm a obrigação de ser especialmente rigorosas com as palavras. Ora o currículo de Manuela Ferreira Leite é suficientemente impressionante para que lhe seja permitido transigir com deslizes de linguagem ou falta de clareza nos conceitos. A primeira mulher portuguesa que ascendeu à liderança de um dos partidos-pilar do regime democrático, e que foi secretária de Estado do Orçamento, deputada, titular da pasta da Educação, ministra de Estado e das Finanças e conselheira de Estado durante dois anos, entre outros cargos, não pode falar levianamente de estar em curso “um verdadeiro golpe de Estado” alegadamente perpetrado sob o alto patrocínio de António Costa. Um golpe de Estado pressupõe o derrube de um Governo legítimo ou a subversão da ordem constitucional vigente e nada na actuação do líder do PS sustenta uma acusação tão radical e violenta, independentemente dos juízos políticos, éticos ou de outra natureza que cada um possa fazer sobre o caminho escolhido por António Costa.
Por outro lado, há um pequeno detalhe que o alarido em torno das negociações à esquerda vai omitindo, com óbvias intenções políticas: nenhum Governo entra em funções sem a intervenção presidencial. Ou seja, é o Presidente da República que tem a iniciativa de convidar o futuro primeiro-ministro a formar uma equipa e o poder de a empossar antes do respectivo programa ser submetido ao crivo parlamentar. E este aspecto é crucial quando se fala de legitimidade. Quando, em 2004 Durão Barroso decidiu aceitar o convite para presidir à Comissão Europeia e passar o seu cargo de primeiro-ministro a Santana Lopes sem recurso a eleições, muito se falou da “ilegitimidade” desta espécie de sucessão dinástica. A discussão foi acesa e o Presidente Jorge Sampaio assumiu o ónus de legitimar uma situação muito controversa do ponto de vista constitucional e que, aliás, dividia os especialistas. Portanto, nada como deixar funcionar as instituições e evitar alarmismos irresponsáveis.