No fim de Portugal que ia a votos, a chuva e o vento metiam medo ao diabo

Melgaço, na Alto Minho, já na fronteira com Espanha, teve a maior taxa de abstenção do país, mas grande parte dos não votantes é residente em França.

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O nível recorde de abstenção das legislativas de há uma semana foi registado em Melgaço: 67% dos inscritos não votaram Paulo Pimenta

Em nenhum outro concelho a taxa de abstenção foi tão alta como em Melgaço, no distrito de Viana do Castelo, já na fronteira com Espanha. E alcançou os 74% nas freguesias de Castro Laboreiro, Cousso, Parada do Monte, todas de grande altitude, na agreste serra da Peneda.

O desinteresse por quem ocupará os bancos na Assembleia da República não é tão grande como a contagem dos votos insinua. Melgaço é terra de emigração. "Foi dali que saiu o primeiro 'expresso' para Paris", como diz, com o seu peculiar humor, o geógrafo Álvaro Domingues, que ali nasceu. É sobretudo por isso, acredita o presidente da câmara, Manoel Baptista, que Melgaço tem tamanha taxa de abstenção.

Nos cadernos eleitorais, o concelho conta 11.698 eleitores. No último recenseamento à população, só detectou 9213 habitantes. E as estimativas do Instituto Nacional de Estatística (INE) já apontam para 8737 em 2014, 784 dos quais com menos de 15 anos. Basta olhar para estes números para Manoel Baptista atirar a abstenção para uns 50%, bem mais perto da taxa nacional (43%).

O desfasamento entre eleitores e residentes nota-se no país inteiro. Agravou-se desde o nascimento do cartão do cidadão, em 2006/2007, indica o autarca. Muitos emigrantes aproveitam as férias para tirar ou renovar aquele documento; ficam logo inscritos nos cadernos eleitorais do município e não vão ao consulado da sua área de residência fazer o acerto.

A história eleitoral recente corrobora a tese do eleitor desaparecido em parte mais ou menos certa (51% de abstenção nas legislativas de 2005, 58% nas de 2009, 62% nas de 2011), mas não explica tudo. Melgaço tem um dos mais elevados índices de envelhecimento, lembra o sociólogo Albertino Gonçalves. Pelas estimativas do INE, há 407 maiores de 65 anos por cada 100 menores de 15. E quem tem muita idade tende a evitar tempestades.

Quase não se avista vivalma nas ruas. Só uma ou outra idosa, roupas pretas de cima a baixo. Um ou outro idoso, de olhar parado. Um ou outro cão de pêlo preto/cinza, orelhas triangulares, olhos amendoados, grandes companheiros de quem por ali se dedica à criação de cabras ou vacas.

Francisco Xavier, 93 anos, está sentado numa pedra, de olhos postos na lenha que a chuva arrastou pelo ribeiro abaixo e ficou presa na pequena ponte. Espera há horas que a mulher, quatro anos mais nova, venha ajudá-lo a tirá-la, mas ela não vem. “Ainda caímos os dois e depois? Quem vai olhar por nós?”

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Maria Alzira e o marido não foram votar: “A viagem é muito longa. O dia estava muito mau” Paulo Pimenta

O povoamento é disperso na serra da Peneda. Só Castro Laboreiro compreende 44 lugarejos. Francisco e a mulher moram num dos mais distantes da vila: Ribeiro de Cima. Oito quilómetros os separam da assembleia de voto, montada no centro cívico, que também acolhe a junta. A estrada desce, estreita, curvilínea, pela montanha granítica, polvilhada de carvalho, medronheiro, azevinho, urzes, giestas e outros arbustos.

 “Eu e a minha mulher não fomos votar”, revela o homem, de uma magreza extrema, pele muito branca. “A minha mulher padece. A viagem é muito longa. O dia estava muito mau.” Alzira, a mulher de quem se fala, aparece no caminho apertado que une as casas, não vá o marido estar a ser levado por um par de burlões, “desses que aparecem na televisão” por se terem aproveitado de idosos incautos. Sossega ao perceber de que se trata. “Ui! Estava chuva e vento que metia medo!”

Talvez tivessem ido, se houvesse transporte. “Da primeira vez que houve eleições [em Abril 1975, para a assembleia constituinte], mandaram um carro buscar a gente”, recorda ela. “Já não sei dizer se foi a junta, se foi a câmara. Sei que fizeram isso duas ou três vezes. Desde então, cada um arranja-se como pode.” Muitos têm carro. Quem não tem, junta-se a familiares ou vizinhos.

A estrada desce mais uns quilómetros, curva contra curva. Acaba no Ribeiro de Baixo. Tardaram estes 12 quilómetros de estrada. O Ribeiro de Baixo fica longe. Portugal acaba no Ribeiro de Baixo. Para lá do rio Laboreiro, uma pequena veiga, outra montanha abrupta, Espanha.

Só se avista um homem a sair de casa com uma vara comprida e uma bebida dentro de um saco de plástico. Vai olhar pelas cabras que andam no pasto. Nem lhe falem em votar. “Estou desgostoso demais. Então nós emigramos para tirar a família da miséria e ajudar Portugal. E agora, que já não podemos trabalhar, que somos velhos, comem-nos uma parte da pensão! Isto tem algum jeito?”

Regressou a Portugal em 2014, depois de 43 anos a trabalhar em França. “Sempre trabalhei para levantar Portugal e para viver tranquilo com a minha família. E Portugal que fez por mim?” “Aqui não há nadinha”, diz o homem, sem perder o tom de indignação que assumiu desde que se lhe falou em votos. Pagaram para que a electricidade chegasse. E para que existisse uma pequena escola, agora vazia.

Nunca votou em França. Nunca se registou nos cadernos eleitorais do Consulado Geral de Portugal em Paris. Sempre trabalhou nas obras, ora num lado, ora noutro, pelo país todo, sobretudo pelo Norte. Não é que nunca tenha votado na vida. Já votou numas autárquicas. Estava em casa, de férias, com a mulher e com a filha, e foi pela estrada acima, até à vila, “botar o voto”. Nunca ajudou a escolher o Presidente da República, nem a Assembleia da República, nem o Parlamento Europeu. E agora, que podia fazê-lo, não quis. “Ó! Não me leve a mal de falar assim, eu tenho bom coração, mas… Para quê? Chegava lá e votava em branco ou no mesmo ladrão!”

“Há um grande desencanto”, diagnostica Álvaro Domingues. Houve uma narrativa que vingou. “As pessoas sentem que não há outra saída, que têm de se resignar [às políticas de austeridade]. E há uma diluição entre o PS e o PSD. Não há um corte. Às vezes, só conta a simpatia ou antipatia.”

Ninguém esperava uma mudança radical por ali. O concelho tem uma tendência marcada. Nas eleições locais há mais empenho, mais participação. Nas nacionais, mais desinteresse, mais abstenção. Já aconteceu o PS ganhar as legislativas, mas o comum é ganhar as autárquicas e o PSD as legislativas.  

Dando uma volta pelo centro da vila de Melgaço, o confronto com a ideia de inutilidade do voto. “Estava tudo decidido”, diz Cecília Pinto, 35 anos. As sondagens, a um ritmo diário, apontavam todas na mesma direcção. “Não valia a pena ir.” Trabalha no Largo da Matriz, no restaurante Cantinho do Adro. Naquele dia, o restaurante ia fechar, dando-lhe duas folgas em vez de uma no fim-de-semana. Partiu para a Galiza na sexta-feira à noite com o marido, os pais, os filhos, e só voltou domingo à noite. Quando entrou em casa, nem se deu ao trabalho de ligar o televisor. “Já sabia que [a coligação PSD/PP] ia ganhar.”

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Melgaço, marcadamente rural, tem um dos mais elevados índices de envelhecimento Paulo Pimenta

Pode ser mais profundo, avalia Álvaro Domingues O desprestígio de quem faz política nacional está entranhado no discurso quotidiano. “A palavra mais usada para referir quem faz política é ‘eles’. Não são os ‘nosso’ representantes; são ‘eles’, os políticos”, diz. Há uma distância que não é só física, que é de representatividade do interesse dos cidadãos. Exemplar parece-lhe a decisão de retirar à sub-região de Melgaço e Monção o exclusivo do vinho alvarinho, a mais valiosa casta de vinhos verdes. “É do alvarinho que em Melgaço pode viver quem não tem emprego no sector público ou no privado”, que ali é incipiente.

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