Passam cem anos desde a extraterrestre chegada do casal Delaunay a Vila do Conde. Sonia e Robert habitaram, por pouco mais de um ano, uma casa junto à praia onde o estranho das suas telas a secar ao sol apoquentava a população. Esquisitos círculos, emissores talvez de assuntos contrabandistas e outras crenças indefinidas, é a memória caricata que por aqui sobra dos maravilhosos Delaunay. De todo o modo, Sonia diria que Vila do Conde era, à altura, um paraíso para a criação, a salvo dos tumultos da guerra por essa Europa fora, fascinada que ficara com a beleza natural e a calma do lugar, consideraria prova de estar num país de sonho.
A evocação dos Delaunay em Vila do Conde tem sido uma luta constante da pintora Isabel Lhano, militante da arte e do charme do casal, que está invariavelmente na organização dos actos mais significativos. Este centenário, que se estenderá na capital à acção da Fundação Gulbenkian, começa com a elaboração de um mural, cuja concepção é exactamente de Isabel Lhano e a execução é de Manuel Martins e Arménio Torres. O mural, uma composição ao jeito Delaunay, está pintado na fachada da Escola Bento de Freitas, na rua em que o casal habitou.
Diz-se pouco sobre os Delaunay em Vila do Conde. Além de uma placa tímida colocada na casa, a cidade não tem significativa evidência da passagem do casal. Precisamos de alguma sorte ou coincidência para tropeçar na história de uma estadia tão prestigiante.
Convivendo com os mais importantes artistas nacionais, como Amadeo de Souza-Cardoso ou Eduardo Viana, os Delaunay haveriam de influenciar a arte portuguesa, bem como se tornariam uma referência no panorama internacional. Para referência da cidade em que habito, importantes se tornaram as pinturas do mercado vila-condense, a parafernália e a riqueza das cores que criaram em Sonia a impressão de uma festividade, ou celebração da vida, e que haveria de ser quase invariavelmente a tónica do seu trabalho. De alguma forma, o mercado e as vendedoras de Vila do Conde definem em Sonia uma dimensão mais do que estética, definem uma ética e atitude perante a arte e a vida que caracteriza gloriosamente a artista.
Ouvi sempre falar dos Delaunay em Vila do Conde como um episódio para a incredulidade, uma espécie de disparate com o qual não se sabe o que fazer. Poucas pessoas têm uma teoria para a estadia dos artistas por cá e, de facto, predomina uma certa desconfiança ou anedota. Talvez exista quem duvide da veracidade da vida vila-condense do casal, alguns também desvalorizam a questão por desconhecerem o impacto da obra de Sonia e Robert no mundo das artes. O certo é que Vila do Conde está como um tópico inestimável de um certo tempo do casal e parece que por cá não se entendeu o que fazer a essa memória. Lamento muito isso. Estamos no país que abateu a fundação de Paula Rêgo, e estou na cidade que recusou a casa de Julio Saúl Dias para museu. Não devia admirar, apenas entristecer, que os Delaunay sejam um assunto meio esdrúxulo a cada passo.
Cem anos de Delaunay servem talvez para entusiasmar alguém para o caso. Talvez surja quem possa garimpar as referências e reconstituir de verdade o exílio do casal por cá. Não pelo folclore ou auscultação da biografia privada do casal, mas pela importância no percurso artístico dos dois e do quanto isso possa ter deixado marca na arte feita para depois. Cem anos de Delaunay devem valer para que, mais do que nunca, cheguem perto de nós, nítidos, entendidos, justificados.