O colonialismo enquanto educação sentimental
Rachel Kushner publica em Portugal o seu romance de estreia. Telex de Cuba é um livro sobre os males do colonialismo a partir da história da revolução cubana.
Ela é uma criança. Acaba de chegar a Cuba, em vésperas da revolução, quando os americanos se agarram à ditadura de Batista como a última oportunidade de se manterem na ilha. As pessoas que Everly olha são dissecadas pela escrita da norte-americana Rachel Kushner num romance sobre desigualdade e segregação centrado nas vésperas da revolução cubana. Durante anos, Kushner [n.1968] escreveu sobre história de arte nas mais prestigiadas publicações norte-americanas. Publicou o primeiro romance, Telex de Cuba, em 2008. É nele que vive Everly. Ela é uma das narradoras deste livro polifónico que apresentou a sua autora como uma das vozes mais estimulantes e audazes das letras americanas e Os Lança-Chamas (Relógio d’Água, 2014) viria a confirmar.
Em vésperas de estar em Portugal onde vai participal no Folio, o Festival de Literatura de Óbidos que começa no dia 15, e pouco depois de editar por cá o seu primeiro romance, Kushner falou da admiração que sente por Roberto Bolaño e o modo como ele deixa que as personagens tomem conta da acção, do quanto é doloroso escrever antes de encontrar o tom, da preocupação com a forma, do gosto pela velocidade, de coisas que não cabem no espaço de uma entrevista onde disse, sobretudo, o que a motiva na escrita: uma espécie de entendimento sobre as pessoas num lugar e num tempo.
Uma das suas personagens mais controversas em Telex de Cuba diz que o ingrediente especial para tornar a carne tenra é a contradição. Isso é valido para a literatura?
Talvez. Pelo menos podem-se arranjar argumentos muito interessantes em defesa disso. Não costumo passar receitas sobre o que é bom para a literatura mas acho a contradição muito útil para atingir uma energia criativa. Parece que se chega a alguma coisa mais parecida com a verdade se olharmos as coisas por uma via em que não se possam facilmente reconciliar-se. A vida contemporânea quer que funcionemos sem reconciliação, através de grandes contradições. Viver numa sociedade capitalista e ao mesmo tempo pensarmos em nós como pessoas com uma ética requer grande contradição. Gosto de pensar nas contradições quando escrevo.
Os seus dois romances partem de circunstâncias históricas concretas, Cuba em vésperas da revolução de Castro e a cidade de Nova Iorque, sobretudo, em ebulição artística e política nos anos setenta. Há na sua literatura uma intenção política?
Cada um revela os meus interesses a cada tempo, como se houvesse alguma coisa a puxar-me para cada um dos temas que eles exploram. Em relação a Telex de Cuba, eu nunca tinha escrito um romance nem estava certa de que conseguisse. Mas quando fui a Cuba, senti o resíduo histórico que lá existe. A única forma de entender qualquer coisa da herança americana em Cuba era escrever um romance sobre isso. Levou-me muito tempo e enquanto escrevia, na tentativa de reproduzir alguma coisa do que era vida para os americanos que viviam ali antes da revolução e as suas relações face ao que se pode designar como as contradições da vida da classe média em Cuba antes da revolução, vivi numa espécie de sonho que era capaz de suster por muitos anos. O segundo livro veio da vontade de entrar na vida de Nova Iorque nos anos 70. Escrevi muitos anos sobre arte contemporânea e muitos dos artistas dos anos 70 continuam a ser mais famosos da actualidade, como Richard Priest, Cindy Sherman toda essa gente. A componente italiana, com as Brigadas Vermelhas, surgiu de maneira muito orgânica. Eu e o meu marido temos amigos italianos. Queria entender como sentiam esse tempo. Toda agente com quem falei tinha uma história incrível, ajudado alguém a fugir, participado na ocupação de um edifício ou havia alguém muito aristocrático que abrigava fugitivos nas suas casas de campo.
Mas ambos têm uma base política forte.
Quando os escrevi tentei ser honesta em relação ao que me interessava como cidadã. No meu primeiro romance eu sentia-me envolvida politicamente. O tema da colonização nos anos 50, 60 e 70 interessava-me de uma forma global. Lembro-me da Rodésia, quando ainda se chamava Rodésia. Quando a revolução comunista chegou à América Central, sobretudo na Nicarágua, pensei na relação colonial que os EUA tiveram na América Latina sem que nunca tivessem tido colónias formais. Isso funcionou como a educação sentimental de uma jovem, que era eu. Com um romance tentava encontrar um sentido para esse período histórico. Cuba estava no centro de tudo isso. O segundo romance é sobre outro momento crítico talvez simbolizado pela crise do petróleo do início dos anos 70. Estou a pensar nisto agora, aposteriori. Estava interessada nessa década em que o mundo ocidental industrializado caia. Em 1978 muitas fábricas foram transferidas para a Ásia e muitos países ocidentais tornavam-se em economias terciárias. Isso teve um impacto directo na cultura e no tipo de arte que as pessoas produzem. Foram as décadas da decadência urbana e a Nova Iorque negra foi um momento ilustrativo da expressão do um descontentamento. Como resultado da decadência urbana perderam-se muitos empregos no centro de Nova Iorque. O Soho era um lugar de fábricas que ficaram abandonadas e que os artistas ocuparam. As pessoas já não têm uma relação dieta com essa transição, mas um novo mundo começou aí. Agora estou a escrever um romance contemporâneo e é como se tentasse apanhar o grande momento histórico seguinte, o da vida contemporânea, e que terá começado os anos 90, com o neoliberalismo. Há sempre uma componente política no meu trabalho. Sinto que trabalho numa tela gigante em que me interessa o modo como as pessoas são moldadas pelo momento e como isso influi no seu mundo privado. Tudo isso é, afinal, uma coisa só. Não sei se os romances são políticos. São mais ideológicos. São uma espécie de investigação sobre a existência sem que isso nunca tenha sido um objectivo.
Estamos a falar quando os Estados Unidos e Cuba reatam relações diplomáticas e o seu primeiro romance termina quando essas relações se rompem. Como se sente face a este momento histórico?
Não sou especialista. O meu conhecimento sobre Cuba vai até 1961 [invasão da Baía do Porcos]. Fiquei surpreendida. Durante a sua campanha Obama não fez promessas sobre normalizar relações com Cuba, mas acho interessante que se ênfase a Cuba. Culturalmente é um lugar muito rico. Há lá muito brilhantismo. Se as pessoas se focarem em Cuba enquanto um sítio de riqueza cultural será maravilhoso, mas não sei dizer muito sobre o tema a não ser senso-comum e que não queria que se tornasse uma República Dominicana, em mais um país nas Caraíbas deprimente, como disparidades extremas entre pobres e ricos e um sistema muito baseado na divisão de raças. Cabe ao povo cubano resistir, mas com as necessidades que têm torna-se difícil prevenir essa espécie de capitalização ou ocidentalização no que tem de mais perverso. Sou cautelosa acerca de juízos sobre a Cuba contemporânea.
Há nos dois romances uma enorme atenção ao lugar, com descrições precisas e uma noção de identidade que contamina tudo o que escreve…
…Sim, mas também sinto que pode ser apenas um relativismo curioso ou como as aparências podem funcionar. Fui tomada pela vontade de sentir Cuba. A ilha ocupa grande parte da imaginação das pessoas que cresceram lá, os cheiros o modo como a humidade se sente. Quando se vai a Cuba é como estar no meio de uma colónia americana, há traços de vida muito idênticos, mas também são idênticos à vida, por exemplo, nas colónias holandesas no Oriente ou nas colónias francesas na Indochina ou África ocidental. Queria misturar esses detalhes porque me parecia haver uma espécie de realidade única ou uma mesma verdade quando se fala de vida colonial, ou sistemas coloniais, mesmo quando se fala de alguma coisa específica de um só lugar. Tem a ver com o facto de ser um território “ocupado”, colonizado. O mesmo modo de tratar os empregados ou servir à mesa. Muitas vezes vou buscar energia aos sítios, mas têm de ser povoados por pessoas e não penso nas pessoas como inseparáveis das suas regiões.
Telex de Cuba é um livro polifónico ao contrário de Os Lança-Chamas onde há um narrador. No primeiro as vozes podem ainda separar-se entre os grupos dos adultos e o das crianças onde sublinha uma maneira menos cínica de ver o mundo, espécie de bondade onde alicerça a ambíguo em relação àquele lugar e momento. Seria fácil cair na tal ideia romantizada ou demonizada de Cuba se optasse por uma só voz?
É verdade. Nessa perspectiva, a estrutura dos dois romances é muito diferente. No primeiro foi um grande desafio tentar perceber como se podia fazer um retrato da época em ficção sem perder complexidade. Se o fizesse na perspectiva de uma só personagem ela teria de ser um conhecedor muito irrealista. Em lugares como aquele ouvem-se os opostos sobre uma mesma coisa. Muitas pessoas tinham tudo a perder naquela revolução e outras tinham tudo a ganhar e outras tinham uma atitude mais mista. Eu queria perspectivas diferentes e a voz do rapaz que abre o romance; ele podia recordar o lugar sem ser cínico, porque era uma criança, nascera lá e não conhecia mais nada; pode ter uma espécie de devaneio nostálgico sobre Cuba, é-lhe permitido ter a sua complexidade intacta. Só com adultos teria de o fazer de modo muito polarizado. Os meus avós viveram em Cuba nos anos 50 e eles achavam-me pessoas muito modernas, umas mentes abertas, mas nas cartas que escreveram de lá pareciam muito xenófobos, muito racistas, não tinham mais nada a dizer sobre os nativos a não ser fazer queixas. Não me interessava o ponto de vista literário. As crianças deixam que as contradições existam sem que que tenham necessidade de as reconciliar ou de suprimir alguma coisa.
Em Telex de Cuba há uma personagem adulta chamada Rachel K. Ela volta a dar nome a um livro de contos que publicou este ano, The Strange Case of Rachel K. Estamos perante um jogo de identidade?
Existiu uma pessoa em Cuba com esse nome. Depois da revolução, os cubanos fizeram um filme sobre ela no final dos anos 60. Chamava-se The Strange Case of Rachel K. O nome deixou-me desperta e a personagem era intrigante. Era tudo muito kafkiano, uma mulher que não foi menstruada durante décadas. E ‘K’ não é uma letra que se use em castelhano. Na vida real ela era uma prostituta que tinha clientes que muito poderosos na política e nos negócios e foi misteriosamente assassinada num quarto de hotel durante os anos trinta no regime de Gerardo Machado. Foi usada como símbolo da decadência da ditadura de Machado. Ela tem a função deligar personagens. Há uma energia estranha que vem do facto de no livro a deixar ter um nome que é muito igual ao meu.
Fala de cinema e os seus livros estão muito próximo desse imaginário cinematográfico. Seja por referências como pelo modo como constrói as narrativas
Interesso-me muito pela relação entre cinema e escrita. Acabo de chegar do Colorado, de um festival internacional de cinema [Telluride Film Festival]. Estive num painel sobre a relação entre escrever romances e ver filmes. Era eu, o Don DeLillo e o Michael Ondaatje. Somos amigos há anos e só falamos de cinema. Grande parte do que escrevo vem da leitura, muito do acesso à linguagem é feito pela leitura, mas ter ideias e produzir alguma coisa ao nível da imaginação pode ser muito potenciado pelo acto de ver filmes. Em Telex de Cuba falo de um filme feito pela figura já muito decrépita de Errol Flynn e da sua namorada de 14 anos. Foram a Cuba e filmaram Cuban Rebeld Girl [1959]. E encontrei o verdeiro La Maziere [personagem e Telex de Cuba que foge da justiça europeia depois de ter colaborado com o regime nazi onde passa a treinar revolucionários] quando via The Sorrow and the Pity (1969), de Michael Ophuls, sobre a colaboração do governo de Vichy com o nazismo. A maneira como aquele homem falava de forma tão cândida, sobre como os franceses que tinham ajudado os nazis, já quase no fim da guerra, vestindo um uniforme alemão… Depois de ver o filme fiquei a escrever até às quatro da manhã. Em Os Lança-Chamas influenciou-me muito Chantal Akerman, com Jeanne Dielman… [1975]. Ver filmes é um modo de agarrar a realidade, é um mergulho profundo. A vida em determinados segmentos desapareceu mas permanece no celulóide, como se fazer um filme fosse uma reunião com um fantasma. Escrever literatura, de uma certa forma, é produzir ao mesmo tempo fantasmas novos e velhos. Estamos a tentar produzir uma ilusão que possa parecer real.