Liberdade de escolha: uma exigência do Estado Social do século XXI
O Estado Garantia é património de todos os partidos políticos para quem a liberdade de escolha seja a pedra angular da dignidade do ser humano.
Negar a capacidade de escolha às pessoas é sujeitá-las à condição de servos de quem escolhe, quer seja a aristocracia (ou as suas metamorfoses mais modernas, a tecnocracia e a “vontade de metade da população mais um"), quer seja um qualquer partido ou grupo vanguardista, considerando-se iluminado para saber o que é melhor para cada pessoa e, portanto, para a sociedade.
Por isso, a liberdade de escolha das pessoas só pode ser questionada quando põe em causa a própria liberdade ou a liberdade de outros.
É fundamental perceber que o juízo de valor que está na base da elevação da liberdade de escolha à condição sine qua non da dignidade humana é “cada pessoa ser considerada o melhor juiz, mesmo que frequentemente falível, do seu próprio bem”. Note-se que a questão está a ser posta a nível exclusivamente operacional, isto é em saber a quem compete avaliar o bem para cada pessoa adulta: ela própria ou outrem em vez dela, neste último caso transformando esta em servo daquela.
É este juízo de valor que está subjacente em todas as declarações sobre os direitos humanos de que Portugal é signatário e à defesa das liberdades, direitos e garantias na Constituição da República Portuguesa. É a aceitação ou não deste juízo de valor que distingue os partidos e movimentos políticos democráticos dos partidos e movimentos políticos inimigos da liberdade.
É sabido que a liberdade de escolha tem limites e, na vida em sociedade, acarreta decisões colectivas que envolvem compromissos entre as liberdades de diferentes indivíduos. Este é o problema bem conhecido das escolhas colectivas, em que é sabido que toda e qualquer decisão a nível colectivo só é verdadeiramente democrática se previamente houver total consenso especificamente em relação a essa questão concreta ou pelo menos em relação à regra de decisão a utilizar (como seja a existência de consenso sobre quando basta a aprovação por maioria simples ou se requer maioria qualificada, 90% ou qualquer outra).
Mais importante nesta reflexão é o facto de que a dignidade humana só estará garantida aos mais débeis cultural, social e economicamente na sociedade se, quando estiver em causa o exercício de um direito fundamental e tal exigir a utilização de meios económicos, a liberdade de escolha for garantida através da garantia dos meios económicos necessários a esse fim. [1]
O Estado, tendo como objectivo possibilitar o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos – e, portanto, também das liberdades de escolha que lhes estiverem implícitas – através da promoção (inclui a regulação, quando necessário) do exercício dessas liberdades por TODOS, tem tido diversas formas de se organizar ao longo dos tempos.
O Estado Social da segunda metade do século XX representou um avanço assinalável sobre o Estado Liberal do século XIX, mas a experiência da sua aplicação prática e as necessidades das sociedades modernas e dos seus cidadãos têm-lhe vindo a colocar novos desafios e a exigir o seu aperfeiçoamento.
Ao chamar a si o exercício preferencial ou mesmo o monopólio na execução de um número crescente de tarefas, o Estado Social tornou-se um sorvedor de recursos, ineficiente, burocrático e centralizador, que paralelamente mata a inovação e o progresso. A liberdade de escolha foi sendo por si eliminada.
Ao reservar para a si o papel fundamental, atribuindo um carácter meramente supletivo às iniciativas dos cidadãos e dos corpos sociais intermédios, o Estado Social apoderou-se da liberdade de escolha dos cidadãos, pervertendo a sua própria razão de ser.
Ao mesmo tempo e com consequências ainda mais graves, desresponsabilizou o cidadão, enfraqueceu a consolidação de uma cultura de rigor e de exigência na sociedade, e perverteu a sã concorrência em que se alicerça a liberdade de escolha. É que não há concorrência sem liberdade, nem liberdade sem concorrência.
O resultado é um Estado Social desvirtuado, frequentemente cativo de interesses corporativos e individuais, habituados a apropriarem-se dos impostos que todos pagamos, com relevo para os que se deixam seduzir pelo proteccionismo e pelos favores do Estado e para alguns grupos de cidadãos (mais ou menos organizados) sentados à mesa do orçamento do Estado.
A acumulação destes efeitos perversos explica porque é que este Estado Social burocrático se torna tantas vezes anti-social, ao enfraquecer a capacidade dos cidadãos gerarem maior riqueza, prejudicando em particular o esforço dos que mais necessitam dessa capacidade, i.e. dos mais fracos e desfavorecidos.
O século XXI, enquanto herdeiro do Estado Social do século XX, não o pode nem o deve negar. Bem pelo contrário, devo fortalecê-lo, até defendê-lo dos seus “falsos” amigos. Mas precisamos de reequacionar os valores humanistas que lhe estiveram na origem, em ordem a um Estado Social que seja realmente garante dos direitos fundamentais de TODOS os cidadãos. Precisamos de um Estado que cumpra o princípio da subsidiariedade, preceito sine qua non de todas as políticas que visem o bem comum, com expressão clara em muitos diplomas da União Europeia e na nossa Constituição.
Este Estado Social do século XXI é por vezes designado por Estado Garantia, na medida em que a sua razão de ser é garantir as liberdades concretas que estão subjacentes a todos os direitos fundamentais do ser humano.
É um Estado a quem se exige que garanta a todos os cidadãos a liberdade de escolha entre serviços que satisfaçam direitos fundamentais, independentemente da titularidade estatal ou não estatal de quem o presta.
É, portanto, um Estado supletivo relativamente a todas as iniciativas dos cidadãos que tenham em vista responder às necessidades concretas das pessoas, de uma forma mais próxima, mais humana e mais responsável, e por isso, também mais eficiente e mais eficaz.
É um Estado que promove e cria meios capazes de fomentar a auto-afirmação dos cidadãos e dos corpos sociais intermédios, ao mesmo tempo que os responsabiliza pelos seus actos, sabendo encontrar o equilíbrio certo entre liberdade individual e interesse colectivo.
Quando o exercício de um direito por um dado cidadão estiver em risco por falta de meios, o Estado Garantia tem a obrigação de lhe garantir, segundo diversas formas possíveis, reflectindo diferentes opções políticas, a capacidade para o exercício desse direito com liberdade de escolha.
É na definição do grau de liberdade de escolha que se quer garantir a todos e, por conseguinte, na definição dos meios a garantir aos cidadãos mais débeis, que se devem manifestar as diferentes propostas político-partidárias. Fazem mal os partidos políticos que se querem apoderar da liberdade de escolha. Fazem mal os partidos políticos que não percebem que, não defendendo a liberdade de escolha, acabam por se tornar em compagnons de route dos inimigos da liberdade. O Estado Garantia é património de todos os partidos políticos para quem a liberdade de escolha seja a pedra angular da dignidade do ser humano.
[1] Veja-se a Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II “Gaudium et Spes”, 26 (Promoção do bem-comum), 1965; “É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa”.
Presidente do Fórum para a Liberdade de Educação