Recordando o velho PS: fronteira da liberdade
Quer o PS romper com 40 anos de liderança da esquerda democrática?
“Costa chumba governo de direita minoritário. PS pensa que será governo se não houver maioria PSD/CDS. Costa confia na maioria de esquerda e na capacidade para fazer acordos.”
A manchete remete para um artigo da jornalista Luísa Meireles que não cita directamente o líder socialista. Há aqui por isso uma esperança de que não seja esta ainda a linha oficial do PS — ou, pelo menos, de que ela ainda possa ser revista.
Porque, se esta for de facto a linha oficial do PS, ela significa um ruptura com 40 anos de liderança do PS na esquerda democrática. Estou a pesar bem as palavras: uma ruptura com 40 anos de liderança do PS na esquerda democrática.
Só num curto período após o 25 de Abril de 1974 é que o PS de Mário Soares alimentou a vaga esperança de um “programa comum” com o Partido Comunista. Essa vaga esperança (herdada da influência francesa inicial de Mitterrand e compreensível após 48 anos de ditadura) começou a diluir-se logo no 1º de Maio de 1974. Aí ocorreram os primeiros sinais da natureza anti-pluralista dos comunistas, que ainda hoje lamentam a queda da ditadura soviética — onde os socialistas estiveram entre as primeiras vítimas.
Conversei muitas vezes com Mário Soares sobre estes episódios e ele explicou-me detalhadamente — como explicou em inúmeras entrevistas, talvez menos detalhadamente — o rápido processo de aprendizagem que a conduta dos comunistas lhe facultara. Aprendeu rapidamente que o PS — fronteira da liberdade, como correctamente anunciou durante o PREC — não podia coligar-se com forças revolucionárias que não reconheciam a chamada “democracia burguesa” (isto é, a democracia parlamentar pluralista, a única democracia que realmente existe).
Desde essa altura, Mário Soares nunca hesitou neste ponto fundamental. Fez um Governo com o CDS, em 1978, depois um “Bloco Central” com o PSD — para salvar o país da bancarrota, em 1983-85. Mas, talvez ainda mais importante, recusou em 1987, enquanto Presidente da República, entregar o Governo a uma maioria parlamentar de esquerda PS-PRD-PCP.
Recordo bastante bem este episódio, porque era na altura assessor político do Presidente Mário Soares (por quem, gostava de sublinhar, mantenho a maior admiração e gratidão pela defesa da nossa democracia). Em 1987, uma moção de censura derrubou no Parlamento o Governo minoritário de Cavaco Silva (exactamente o cenário que a manchete do Expresso anuncia, neste caso para uma eventual maioria relativa da coligação PSD-CDS).
“Procissões” (como lhes chamou Soares) foram então a Belém explicar ao Presidente que havia uma maioria de esquerda (PS-PRD-PCP) no Parlamento e que o dever de “um Presidente da esquerda” era dar o Governo à esquerda.
Mário Soares ouviu todos atentamente. Mas a verdade é que nunca hesitou. Nunca aceitou a ideia peregrina de nomear um Governo de coligação do PS com partidos à sua esquerda quando o partido mais votado fora o PSD.
Ele sabia que não era “o Presidente da esquerda”, mas o Presidente de todos os portugueses, o Presidente da democracia portuguesa. Por isso, não deu o Governo à “maioria de esquerda” e convocou eleições antecipadas — em que o PSD de Cavaco Silva obteve a primeira de duas maiorias absolutas.
O que a manchete do Expresso anuncia é uma ruptura com esta nobre tradição de Mário Soares e do seu Partido Socialista — do Partido Socialista que resistiu pacificamente à ditadura antes do 25 de Abril e que depois ancorou Portugal na União Europeia, na NATO e no convívio das nações civilizadas.
Estou certo de que a liderança socialista pode ainda ponderar melhor o alcance do que está a ser sugerido. Se a manchete do Expresso fosse confirmada, o PS estaria a romper explicitamente com o que Mário Soares fez em 1987 — e em 1983, e em 1978, e no 25 de Novembro de 1976.
Dizem-me que um dos anunciados candidatos presidenciais à esquerda, o Professor Sampaio da Nóvoa, já declarou repetidamente que a ideia de que o PS não pode fazer alianças de governo com o PCP é para ele chocante. Talvez possa ser recordado ao Professor Sampaio da Nóvoa que essa “ideia chocante” foi uma das ideias centrais do Partido Socialista desde pouco depois do 25 de Abril de 1974.
Pode, para Sampaio da Nóvoa, ser chocante que essa ideia tenha fundado e viabilizado a nossa democracia pluralista, europeia, ocidental e… burguesa. Mas os líderes, militantes e eleitores históricos do Partido Socialista sabem que essa “ideia chocante” foi a pedra de toque do Partido Socialista — fronteira da liberdade.