E no princípio estavam as avós
A antropóloga Kristen Hawkes tem vindo a estudar o papel das avós na sociedade humana e nas espécies que nos são mais próximas. E conclui que é por causa da existência destas cuidadoras extremadas que temos evoluído para a monogamia, uma tese que colhe discórdia entre os antropólogos
O que fazem as avós? Alimentam-nos, dão-nos mimos e estão constantemente a dar-nos a volta com perguntas sobre o nosso estado amoroso. Mas às avós pode também estar reservado outro papel, pelo menos de acordo com a antropóloga Kristen Hawkes, que diz serem elas a força motriz por detrás da evolução de grande parte da sociedade humana.
Hawkes, especialista em evolução humana e biologia social na Universidade do Utah, é autora de vários estudos sobre a “hipótese avó”, na qual defende que muitas das características que nos distinguem dos nossos antepassados macacos se devem ao papel de cuidadoras extremadas que são as mães das nossas mães. No último estudo, que foi publicado há uma semana na Proceedings of the National Academy of Sciences (também conhecido como PNAS, a revista científica da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos), Hawkes e os outros co-autores explicam como a “instituição avó” é um factor crucial na disseminação da monogamia.
A explicação tradicional da evolução humana diz que, quando as avós começaram a ajudar a criar os netos, as filhas ficaram libertas para procriar mais e em períodos mais curtos de tempo. Essas avós de longa duração acabaram por ter mais netos e estes, por sua vez, acabaram por herdar os genes dessa longevidade e assim ajudaram ao aumento da esperança de vida.
O homem, por sua vez, aproveitou as vantagens de ter uma vida mais longa e de passar a usufruir de redes sociais mais alargadas e optou pelo acasalamento com uma única mulher, e daí as relações humanas se terem tornado monogâmicas. Não admira que sejam sempre as avós a lembrar-nos de que ainda não casámos!
A sequência de eventos que liga a existência das avós à relação monogâmica pode ser rebuscada mas é sem dúvida atractiva. Começa, como defende Hawkes, com um povo do Norte da Tanzânia, os Hadza. A antropóloga começou a estudar os Hadza no anos 1980. São dos últimos caçadores-recolectores do mundo e desde há dezenas de milhares de anos que mantêm o mesmo estilo de vida. Não se dedicam à agricultura mas à caça, à imagem do que já faziam os seus antepassados, e são por isso uma raríssima janela aberta sobre o passado pré-histórico do homem, como justifica a antropóloga.
Uma das muitas coisas que tanto Hawkes como os seus colegas acabaram por concluir é que as anciãs do povo Hadza eram “fantásticas recolectoras de tubérculos”, diz a antropóloga. “Era nas mãos delas que estava a tarefa de encontrar este precioso recurso alimentício. Para os mais pequenos, precisamente por serem ainda pequenos, seria difícil descobrir os tubérculos, mas elas faziam-no e davam-nos a comer às crianças.” Para nós, que temos avós que insistem em encher-nos o estômago sempre que as visitamos, esta ideia pode parecer até mundana. Mas foi uma espécie de momento “eureka” para Hawkes.
Como qualquer documentário sobre natureza pode atestar, as prioridades no mundo animal são: 1.) procurar alimento; 2.) procurar companheiro. Dito isto, percebe-se que, no mundo animal, a presença de uma fêmea na comunidade já depois de ter passado o seu tempo fértil é uma anomalia. Entre os primatas, os humanos são a única espécie que continua a viver para além da menopausa. A possibilidade de procriar é o que comanda a evolução de uma espécie e não há qualquer razão evolucionista válida que justifique a permanência de elementos femininos que há muito passaram o seu apogeu como reprodutoras. A não ser, como sugere Hawkes, que passem ao papel de avós.
Em 1997, Hawkes e os seus colegas antropólogos James O’Connell e Nicholas Blurton Jones publicaram um estudo no jornal Current Anthropology no qual defendiam que a esperança de vida na mulher tem aumentado e evoluído na medida em que foram desenvolvendo um papel mais significativo enquanto cuidadoras dos mais novos. Com uma mãe-avó por perto, a filha podia ter mais crianças e com gravidezes mais próximas, pois, ao invés de esperar que o mais novo cresça e seja independente até ter o próximo, contava já com essa preciosa ajuda (entre os primatas, os humanos são também os únicos que dão à luz uma segunda cria antes de a primeira estar completamente desenvolvida).
Quanto mais uma mulher viva além do seu apogeu reprodutor, mais netos terá a possibilidade de vir a criar. Quer isto dizer que as avós de longa duração acabaram por ter descendências mais alargadas e também a possibilidade de disseminar os seus genes da longevidade. O resultado ao longo de milénios foi que a esperança de vida da mulher para além da idade fértil multiplicou-se por décadas.
Em 2012, Hawkes esteve a trabalhar com uma especialista australiana em estatística para arranjar um modelo matemático para estudar este processo. E chegaram ambas à conclusão de que ao longo de 60 mil anos as avós quase conseguiram duplicar a esperança média de vida por comparação com os nossos primos macacos mais próximos. Com este resultado — humanos que vivem muitos mais anos do que alguma vez aconteceu na história da evolução humana —, Hawkes fez-se esta pergunta: então e o que se passa com os homens?
Ao contrário da mulher, a fertilidade masculina não entra em declínio por volta dos 40 anos. Significa isto que as sociedades humanas têm tido muito mais homens férteis do que mulheres com quem estes possam acasalar. E isto foi uma grande mudança desde as sociedades matriarcais dos nossos antepassados e familiares primatas, nas quais normalmente o número de fêmeas em idade fértil ultrapassava o dos machos (numa linguagem das ciências da natureza, os machos tendiam a passar mais tempo a caçar e na luta, correndo por isso muito mais riscos de morrer prematuramente).
Há três modos de os machos maximizarem a sua descendência de acordo com aquilo que manda a natureza, e que é o prolongamento da espécie: podem tentar acasalar com o maior numero possível de fêmeas; podem ficar com uma só fêmea e tentar impedir que outros machos se aproximem dela; ou podem ainda investir tempo e recursos na educação das crias que já tenham. Na maioria das espécies, o que se verifica é que os machos optam pela primeira situação já que a “senhora” engravida e depois fica a tomar conta da “ninhada”. É por isso que os bonobos, ou chimpanzés-pigmeus — os nossos parentes mais próximos — , têm taxas astronómicas de interacções sexuais.
Se olharmos para o caso masculino, no rácio de adultos em idade fértil, o papel de Don Juan pode tornar-se mais arriscado. Por serem altamente competitivos, “para eles, a vantagem acaba por ser manterem vigilância sobre as mulheres que já têm”, como diz Hawkes. Para estes homens de longa duração, acasalar para a vida, manter e proteger uma só mulher e os seus filhos acabou por se tornar uma vantagem da evolução. E foi assim que nasceu a relação monogâmica, como sustentam Hawkes e os seus colegas no estudo agora publicado no PNAS.
A “hipótese avó”, acreditam Hawkes e os seus colegas, pode ainda revelar outras qualidades humanas únicas: aumento do tamanho do cérebro (porque quem vive mais anos pode dedicar mais tempo à aprendizagem e retirar daí as respectivas recompensas); comunidades mais complexas (porque educar uma criança deixou de ser uma tarefa independente para passar a ser um esforço conjunto); maiores indíces de competitividade (promovidas precisamente pelo aumento do tamanho do cérebro e pelas comunidades mais alargadas); e até empatia (porque redes sociais mais extensas requerem de todos nós uma evolução no sentido do respeito e compreensão pelo outro).
“Quando começamos a levar a sério esta ‘hipótese avó’ é espantoso o quanto ela nos pode transmitir [sobre a vida em sociedade]”, diz Hawkes. “É uma fonte verdadeiramente rica para tantas outras actividades.”
Nem toda a gente está de acordo sobre a “hipótese avó”, bastante controversa no mundo da antropologia. Muitos estudos têm defendido que, para a evolução humana, o contributo das avós é insuficiente para justificar o crescimento tremendo da longevidade humana. Outros estudos lembram que a hipótese de Hawkes descura o papel dos elementos masculinos das comunidades caçadoras-recolectoras, incluindo os próprios Hadza, de que são os homens o garante da maior parte da alimentação dos mais novos do grupo.
Há uma teoria sobre a menopausa que compete com a de Hawkes mas defende que a mesma se deve ao conflito entre as mulheres de diferentes gerações. Noutras espécies, como por exemplo nos elefantes, as fêmeas mais jovens suprimem a sua fertilidade enquanto houver fêmeas mais velhas a procriar, de modo a não entrarem em competição directa na busca de segurança ou de alimentos.
Hawkes refuta estas teses argumentando que a “hipótese avó” é desconfortável para muitos cientistas simplesmente porque vira do avesso as crenças arreigadas sobre as sociedades humanas. “A cartilha que nos é contada” sobre monogamia, como diz esta antropóloga, é que ela começa no seio de famílias nucleares e relações duradouras e estáveis. Se essas relações estivessem para durar, então as mulheres mais depressa estariam disponíveis para acasalar com os melhores machos caçadores de forma a que comunidades mais alargadas e inteligentes se pudessem formar.
“Já conhecemos de gingeira a história do Ozzie & Harriet e do Leave it to Beaver [séries americanas sobre a vida familiar dos anos 1950]”, diz Hawkes, não sendo por isso de estranhar que os antropólogos tomem os seus exemplos por garantidos.
O que a “hipótese avó” sugere é que a monogamia pode não ser uma qualidade inata porque na narrativa desta antropóloga ela é estudada ao longo dos tempos e apresentada como resposta às circunstâncias de cada momento, tal qual outra adaptação do humano à evolução. Talvez as conclusões a que chega possam não ser particularmente românticas, mas ainda assim pode vir a ser uma hipótese a ter em conta. Tentem perguntar à vossa avó na próxima vez que elas vos ligar.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
Texto originalmente publicado a 27 de Setembro de 2015