Londoño

O novíssimo Museu de Arte Moderna de Medellín abre com a genial vastidão de José Antonio Suárez Londoño. A grande sala lateral do térreo expõe, debaixo do título de Mostruário, uma infinidade de gestos que resultam numa das mais preciosas colecções de desenhos que já vi.

Miniaturista por natureza, Londoño elenca o mundo pormenorizadamente, com mestria técnica e profunda capacidade poética, como se fizesse um inventário cuidadíssimo do que se vê, do que se faz e do que se sente.

De facto, a imagem nunca foi tão poética, uma coisa de expressão extrema, no limite das capacidades humanas, a fazer supor que existe a possibilidade de vislumbrar as formas puras, o movimento puro dos corpos, a ideia pura de cada elemento e emoção. Ao revelar o desenho, o artista deita os olhos a partir do lugar impossível de quem descortina absolutamente o segredo de cada ser ou matéria. O que vemos surge despido como se depurado à sua mais genuína natureza. Tudo, até o tosco, exibe um certo conceito de perfeição.

Observar o trabalho de Londoño é uma auscultação da espiritualidade da vida. Uma contemplação e questionamento do que significa existir. Os desenhos, amiúde datados, contam o tempo, contabilizam o tempo, sobram dos dias como a sua matéria imperdível. São, às vezes literalmente, um calendário e importam para que se colha do tempo um fruto. Podemos pensar na exposição de Londoño como uma reserva de frutos. Frutos nas paredes e nas vitrines, para sempre generosos no ofício de nos alimentar. De outro modo, podemos pensar que assim se reparte connosco o pão.

Impressionam-me os rostos. Retratos mínimos que não perdem profundidade, muito ao contrário. Aproximamos o olhar da pequena porção de papel como se precisássemos de ver para dentro da superfície, muito adiante do óbvio. Aproximamos o olhar estupefacto e o pequeno papel contém tudo, como num gigante de Goya ou como num gigante de Rembrandt ou de Dürer.

A arte de pequena escala de Londoño é a intensificação absoluta. Num escasso lugar de papel as coisas comparecem intensas. Os grandes mestres da história universal não fariam melhor.

Numa pequena estante são empilhadas algumas lupas. O visitante pode esmiuçar a imagem artificialmente, como um detective incrédulo cujo impulso inicial é o de encontrar falhas. Mas o uso da lupa parece cegar. Vemos na perspectiva do engenho de ver e não vemos na relação directa com a obra. A exposição pode tornar-se um espectáculo de circo. Andámos à cata da coisa incrível. A coisa incrível, no entanto, está à vista desarmada.

O jogo lúdico das lupas apenas sublinha a humanidade das imagens de Londoño. Aumentadas, são ainda perfeitas e, por algum insondável motivo que apenas aos artistas assiste, contêm vida. São vibrantes e dotadas de alma em cada infinitésima porção. Posso lembrar sempre os rostos, o modo de presença que nos suscitam. Gente que apenas está mas, verdadeiramente, parece estar diante de nós.

O mostruário de Londoño deita mão a tudo, exibindo as suas paletas, memorandos, padrões decorativos, como guardando conteúdos e recipientes, pessoas e lugares, momentos e fugazes sensações. São uma preservação obstinada de todas as dimensões. No caso desta exposição, somos também convidados à relação de Londoño com os seus heróis. De Rimbaud a Patti Smith, Cendrars a Walser ou à geração Beat, assim como a magnífica colaboração com Hector Abad Faciolince, que este não completou. Londoño assiste ao mundo e à recriação do mundo. Tudo o que vemos de si, de qualquer maneira, é sempre paixão.

Sei que é pouco provável que alguém a ler-me possa estar na rota de Meddelín a tempo de ver esta exposição, mas era-me impossível conter a reacção a algo tão poderoso que acontece numa das mais surpreendentes cidades do mundo. A sofisticar-se esplendorosamente, Meddelín colocou o MAMM no lugar do coração, e o que lhe conferiu vida, sem dúvida, foi José Antonio Suárez Londoño. Meddelín pode oferecer-lhe a mais genuína síndrome de Stendhal. Florença que se cuide.

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