Homens de mãos dadas

Christian Rizzo admite que nunca tinha posto tanta dança nas suas peças como em D’après une histoire vraie. Foi o que trouxe de uma ida a Istambul em 2004: outra maneira, muito do Sul da Europa, nada gender, de carregar o palco de testosterona.

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MARC DOMAGE
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Uma noite, há 11 anos, o coreógrafo francês (Cannes, 1968) viu um grupo de homens invadirem um palco em Istambul com a sua maneira tão do Sul de dançar (ombro com ombro, braço com braço, cabeça com cabeça) e isso ficou para sempre com ele, ao ponto de mais de uma década depois ter construído a partir do muito pouco de que se lembrava o espectáculo que em 2013 estreou no Festival de Avignon e que este sábado chega ao Teatro Municipal Rivoli, no Porto, onde abre mais uma edição do Circular – Festival de Artes Performativas.

É uma informação que ele dá logo no título, D’après une histoire vraie, como que a vincular esta epifania – a epifania de um lugar onde a energia extraordinariamente primitiva e extraordinariamente poderosa do folclore se cruza com os corpos pós-modernos de oito bailarinos e a pulsão de vida e morte de duas baterias siamesas – a um espaço e a um tempo precisos. Tão precisos que (repetimo-nos, porque ele se repete ao telefone) Christian Rizzo não se lembra de nada: “Sim, o título desta peça não evita a referência ao ponto de partida, mas é tudo um bocado mais complexo do que isso… É verdade que, num festival em Istambul, a meio de um espectáculo que eu absolutamente esqueci, vi um pequeno fragmento de uma dança tradicional turca que se inscreveu em mim de uma maneira fortíssima. Foi tão estranho ter-me esquecido de tudo à excepção desse minúsculo momento… Porque é que eu, que venho da dança contemporânea, fui mais tocado pelo folclore do que pelo resto do espectáculo, teoricamente mais próximo da língua coreográfica que eu falo?”.

Boa pergunta – tão boa que Christian Rizzo demorou mais de dez anos a responder e mesmo depois de D’après une histoire vraie continua em dificuldades (ad noctum, a criação que estreará no início de Novembro em Nantes, continua a sua pesquisa em torno das formas da dança popular). Parte do que o deixou sem chão em Istambul, porém, está neste espectáculo em que tentou reconstituir “uma memória persistente”, “a memória de uma sensação profunda e quase arcaica”: homens que dançam, e que dançam assim desde sempre. É uma memória como outra qualquer? De todo, é a memória que o libertou: literalmente, porque D’après une histoire vraie foi a peça em que se separou da tralha com que costumava encher o palco nos seus espectáculos sempre entre a coreografia e a instalação, mas também de forma subliminar, ou seja na raiz da sua própria história coreográfica, porque em nenhuma das peças anteriores se tinha dançado tanto.

Avancemos por partes. Para o encher com estes oito bailarinos vindos, acidentalmente ou não, do Sul da Europa ou do Sul do mundo – entre Fabien Almakiewicz, Yair Barelli, Massimo Fusco, Miguel García Llorens, Pep Garrigues, Kerem Gelebek, Filipe Lourenço, Roberto Martinez há passaportes portugueses, espanhóis, italianos, turcos, israelitas, peruanos… – e com os dois bateristas franceses, Didier Ambact e King Q4, que quis que ali se confrontassem (se é uma conversa ou uma guerra nunca percebemos bem), Christian Rizzo teve de esvaziar o palco, rompendo com os instintos hiper-cenográficos alimentados por todo um passado nas artes visuais (estudou na Villa Arson, em Nice), na música (teve uma banda em Toulouse), na moda (teve uma marca de roupa) e na criação de figurinos (por exemplo para Mathilde Monnier, Emmanuelle Huynh, Mark Tompkins, George Appaix e Vera Mantero). Toda a conversa que queria iniciar com D’après une histoire vraie, concorda, precisava disso, de uma folha em branco, para poder acontecer. “Tinha de deixar o palco aos bailarinos, não podia ser de outra maneira. Este é um espectáculo em que eu desapareço atrás dos corpos deles. Parece-me que a escrita coreográfica é suficientemente forte para existir sozinha.” Mas não é verdade que não haja nada em cima do palco: “Há um tapete, há ângulos, há ainda assim uma cenografia. O vazio não existe, cria-se – e para o criar, para o tornar visível, é preciso que estejam lá coisas.”

d'après une histoire vraie / création 2013 / extraits from l'association fragile on Vimeo.

Também isso foi uma epifania, embora definitivamente o actual director artístico do Centre Coréographique National deMontpellier Languedoc-Roussilon esteja mais interessado no que aconteceu em cima desse vazio. “Não é verdade que esta seja a minha peça mais movimentada, mas talvez seja de facto a mais dançada. Sempre houve muito movimento nos meus espectáculos, só que costumava estar equilibrado com a cenografia, com a luz, com outras formas de movimento – nunca estava só nos bailarinos, havia outras coisas a mexerem-se. E sim, a dança – sinto que vai ficar. Não porque enquanto coreógrafo me tenha viciado nela, mas porque é a questão que realmente quero discutir neste momento.”

 

Alegria

Certo, mas o que haverá assim de tão novo na dança para Christian Rizzo querer discuti-la agora, 20 anos depois de lá ter chegado? Justamente, temos de reformular a pergunta: o que haverá assim de tão velho na dança para Christian Rizzo querer discuti-la agora, 20 anos depois de lá ter chegado? “O processo de criação de D’après une histoire vraie trouxe-me a uma diferença fundamental que separa a dança contemporânea da dança tradicional: a diferença entre a autoria e o anonimato. Aquela dança tradicional turca que eu vi em Istambul carregava o peso, e ao mesmo tempo a força, do anonimato: não a marca de um autor, mas a marca de sucessivas gerações, de sucessivas transmissões.”

Para um artista habituado a ver-se como the name above the title desde 1996 – o ano em que, depois de muitas participações como intérprete em criações de coreógrafos como Hervé Robbe ou Rachid Ouramdane, se aventurou a fundar a sua própria estrutura, L’Association Fragile –, é uma gigantesca mudança de paradigma. “Tenho, é claro, uma história como autor. Mas até essa história transporta a história de imensos anónimos. Quero pensar sobre isso – sobre o lugar onde acaba uma história anónima da dança e começa uma história autoral, sobre o tipo de influência que o folclore pode exercer sobre uma escrita coreográfica contemporânea”, diz ao Ípsilon.

A forma como isso se faz na peça que este sábado estará no Porto é subtil – e ao mesmo tempo esmagadora. Mais do que discutir as categorias do anónimo e do autoral, do popular e do contemporâneo no contexto de uma prática mista (os movimentos dos bailarinos descendem muito difusamente de vários repertórios tradicionais, mas têm a escrita de Christian Rizzo em cima), D’après une histoire vraie resgata do folclore uma certa maneira muito do Sul da Europa, e com toda a energia patriarcal que essa ascendência implica, de inscrever o corpo masculino, e com ele uma ideia visceral (ele diz: “nada gender”) de comunidade, na dança e no mundo. Foi aliás nisso que todos se concentraram durante o processo de criação: não houve nenhum trabalho de recolha do repertório tradicional, antes um trabalho individual, primeiro (o do coreógrafo, para “fazer emergir uma recordação”), e colectivo, depois (o de todos, músicos incluídos, sobre “o imaginário associado ao folclore”), disposto a restaurar aquilo que verdadeiramente tocou Christian Rizzo em Istambul. “Finalmente percebi que a razão pela qual senti tanta empatia com aquela forma de dançar foi ter-me dado a ver homens a dançarem entre eles. E é tão anormal, hoje, associarmos homens à dança: as representações masculinas habituais estão sempre ligadas ao desporto, à caça, à guerra, aos carros… E pelos vistos nem sempre foi assim”, sublinha.

Ao longo do processo, formas típicas desse repertório que vai do Sul da Europa ao Mediterrâneo e ao Médio Oriente encaixaram-se – nem sempre sem atrito – na prática de um coreógrafo viciado “na queda e no toque”. No final, Rizzo e os seus intérpretes tinham verdadeiramente descoberto “a alegria de poder dançar em roda, de poder dançar de mãos dadas, de poder dançar num galope constante”, e a estranha familiaridade de descender “de uma comunidade que dança”.

É sobretudo disso que ele se lembra agora, da alegria: “Não sei como teria sido se tivesse feito esta peça com um elenco misto – ou só com mulheres. Mas sei o que aconteceu com estes dez homens: foram muito mais longe do que normalmente vai um elenco que se junta para fazer um espectáculo. Tornaram-se um verdadeiro bando.”

O tipo de bando que joga à bola no intervalo dos ensaios, sim. Mas também o tipo de bando que dança de mãos dadas. 

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